a fome ( desculpa , Cicero , mas é que se eu falar em latim , podem me acusar de proselitismo demagogo , ou coisa do tipo !) 2 . Um artista tem que ter um propósito , tem que ter uma causa , tem que ter uma agenda , argumentam os Canalhas das Cartilhas .
Cartilhas dos infernos ! Outro dia um amigo veio me dizer que o Kerouac era de esquerda , que os livros dele eram um dos golpes mais contundentes à moral burgo-cristã . Tive que perguntar :
– Que que você leu dele ?!
– Dele , nada , mas as cartilhas do partido ...
–
Uma obra de arte só serve se tiver um autor politizado . Vivemos o tempo do poeta filiado , do músico engajado , do dramaturgo militante ... E as exigências retroagem ! Livros passados são condenados , porque seus autores estavam do lado errado da história . Não me espantaria , em nada , que os fiscais da cultura , daqui a pouco , começassem a tentar politizar os rabiscos milenares da Lagoa Santa . Primeiro vem a crítica : vão querer ver quais “ funções da linguagem ” aqueles primitivos conseguiram dominar para ver a força daquilo tudo . Depois concentram-se em analisar a “ mensagem ”:
– Cenas de caça ? E o respeito à natureza ?!
E num piscar de olhos aquela beleza toda desliza das paredes e cai por terra por não ter um propósito . Não tem
2 Referência à epressão latina “ cum dignitate otium ”, cunhada pelo poeta Cícero , em sua obra Em Defesa de Sêxtio , em que defende a honraria do trabalho produzido no ócio . A forma inversa “ otium cum dignitate ”, se popularizou ao longo dos séculos e tem sido adotada como lema de poetas e romancistas . ( Nota do editor .)
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mensagem ? Não serve .
Bulhufas ! Pois a força daquilo tudo é a , pura e simplesmente . E nem venham querer me dizer que isso é uma valorização da função estética , que quebro tudo e vou embora ! Não é ! É uma valorização de algo que transcende essa dicotomia científica de “ funções da linguagem ”. É a valorização de algo que ultrapassa a obra e o artista , e que revela um ideal metafísico : a !
É que ninguém no partido acredita na beleza . Inventaram esse negócio de função de linguagem – “ denotativa ”, “ emotiva ”, “ conativa ”, “ poética ,” “ fática ” e “ metalinguística ” – a fim de politizar a ideia de beleza ; esvaziar a ideia de beleza . Pois para quem tudo é relativo , nada belo , tudo é apenas belo .
É evidente , cacete , que existem aspectos subjetivos no que cada indivíduo tem por belo , mas isso não quer dizer que toda noção de beleza é subjetiva ! Trata-se de um conceito metafísico , como a verdade . Aliás , exatamente como a verdade !
“
Discutir o que é belo é uma atividade milenar que contribui para enriquecer a experiência humana . Exatamente como na filosofia , na teologia e na ciência , tenta-se chegar à verdade , mesmo sabendo que ela , muitas vezes , foge do alcance dos homens . É um exercício distinto daquele empreendido pela política e pelas ciências da sociedade , em que se nega a busca por verdades , pois se tem um entendimento de que tudo no mundo é relativo , ou quando não seja , de que na
3 , John , Ode On a Grecian Urn . Tradução livre do autor . O original lê : “‘ Beauty is truth , truth beauty ,— that is all / Ye know on earth , and all ye need to know .’” ( Nota do editor .)
” 3