Madame Eva Mme Eva quinto numero | Page 9

MICROFICÇÕES 2 Por Alexandre Valadares E mpreendi recentemente a seguinte experiência: deixei uma xícara de café destampada sobre a mesa por quarenta semanas e, sorvendo um gole de seu conteúdo a cada noite de segun- da-feira, tentei registrar as alterações que a ingestão dessa bebida deteriorada me causava. Os resultados não poderiam ser mais desapontadores. Na segunda sema- na, percebi que o calor do café já se tinha dissipado na atmosfera, misturando-se aos gases, às gotículas d’água e aos grãos de poeira que gravitam eternamente em torno da luz. Suas propriedades estimulantes tinham cessado e um amargor rançoso domina- va o paladar. A partir da tercei- ra semana, uma linha de borra úmida dava a volta por dentro da xícara demarcando o nível do gole anterior. Na sétima, um mosquito boiava inerte na superfície. Com onze semanas, o café ficara definitivamente intragável, e apenas a obstina- ção científica me animava a prosseguir com os testes. Na décima-sexta semana, ponti- nhos brancos começaram a sal- picar o líquido escuro e morto. Em vinte semanas, o contato do café me dava cócegas na gengiva e uma prolongada sensação de dormência após. Na vigésima-terceira semana, um olho alaranjado e lânguido pareceu abrir-se no fundo da xícara. Na vigésima-sexta, per- di a consciência ao tocar com a boca a borda. Duas semanas depois, os pontinhos brancos ganharam pernas. Na noite da trigésima-segunda segunda- -feira, sonhei que estava preso num coador e lutava desesperadamente para sair do meio do pó enquanto ouvia o assovio sinistro da chaleira com água fer- vente. Na manhã da trigésima-quarta ter- ça, tive uma crise nervosa no escritório e disparei espuma de extintor de incêndio nas xícaras de café dos colegas, gritando, cappuccino! Na trigésima-sexta semana, os restos mortais do mosquito se tinham desintegrado completamente. Na penúl- tima, uma formação vegetal começou a brotar do olho do fundo da xícara . Na quadragésima semana, uma flor floriu. 7 Ruthinha Losfeld © 2017