CORTE E COSTURA
Por Luiz Henrique Soares
“ela amava o mundo, amava o que fora criado
- amava com nojo ”
Clarice Lispector, no conto
O
s banheiros foram feitos para que
as pessoas chorem dentro deles.
não há sequer um banheiro no
mundo em que alguém não tenha cho-
rado, talvez embalado por uma ânsia de
vômito ou só pelo desejo humano – ex-
tremamente humano – em conhecer o
próprio corpo. banheiros químicos, ba-
nheiros de pensão, banheiros de hotel,
banheiros de restaurante, os banheiros da
firma, o nosso banheiro, aquele de casa,
- todos, exatamente todos – guardam al-
guma história. sejam boas ou ruins, são
histórias. os banheiros são o grande es-
paço da derrota humana, ou não, sempre
arquitetados para abrigar apenas um ser
humano dentro de si. a cor branca é a cor
universal do piso de todos os banheiros
do mundo. a claridade, a calmaria, as coi-
sas não escritas, transparentes, palavras
que não cabem na boca. o branco revela,
revela a densa névoa que separa o meu
corpo do mundo, a grande derrota.
é nesse momento que consigo vis-
lumbrar, apesar da evidente mutilação
dos meus sentidos, o enfrentamento de
minhas maiores derrotas. estou sentada
no chão, encostada ao lado da porta do
banheiro, a cabeça lateja de dor. não con-
sigo relaxar as minhas pernas e aquela
posição está desconfortável demais para
uma mulher da minha idade. tenho von-
tade de levantar e pegar o celular que
está em cima da cama e ligar para a mãe
de andré. dizer a ela que venha buscá-lo,
que venha buscar as coisas dele, que ele
está saindo de casa, que eu o estou expul-
sando de casa. não tenho coragem.
andré enche a boca com a água
, de1952
quente que desce do chuveiro. já não era
mais criança. o toque frágil dos dedos no
corpo delgado e limpo dá sinais do quan-
to ama a perfeição das coisas. cospe a
água quente nos pés. a fumaça que toma
conta daquele cubículo das necessidades
embaça a minha visão. não consigo ver o
rosto do homem que toma banho a mi-
nha frente, ele está se escondendo por de-
trás do fino manto de água. ameaça me
encarar nos olhos. como se brincasse
de deus, finge que não me vê, se escon-
de, finge que meu corpo estirado naque-
le chão, enquadrado por paredes suadas,
não é nada. mexe nos cabelos, os ensaboa.
o meu cheiro preferido de xampu. derra-
ma espuma nos olhos e imediatamente
os fecha, rústico.
parece evitar, com nenhuma se-
gurança, que a espuma entre em conta-
to com os olhos, tenta evitar a irritação
trágica que causa ainda mais irritações
trágicas posteriormente. mas isso é qua-
se sempre tragédia. os banheiros sempre
escondem, sejam por amor ou por ran-
cor, as maiores tragédias. acho que sou
claustrofóbica. não que eu não saiba lidar
com o confinamento dos espaços, mas é
a dura pena de querer e não querer estar
ali. a implicância de andré com a limpeza
do corpo é a tentativa obscura de evitar
a sujeira dos dias. é não parar para ob-
servá-la. na queda e na derrota que me
desenham agora, sei bem o que é estar
no chão, vasculhando a sujeira dos acon-
tecimentos.
andré não sorri. é firme e metó-
dico na limpeza de cada uma das partes
de seu corpo. parece decretar a morte do
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