Madame Eva Mme Eva quinto numero | Page 10

CORTE E COSTURA Por Luiz Henrique Soares “ela amava o mundo, amava o que fora criado - amava com nojo ” Clarice Lispector, no conto O s banheiros foram feitos para que as pessoas chorem dentro deles. não há sequer um banheiro no mundo em que alguém não tenha cho- rado, talvez embalado por uma ânsia de vômito ou só pelo desejo humano – ex- tremamente humano – em conhecer o próprio corpo. banheiros químicos, ba- nheiros de pensão, banheiros de hotel, banheiros de restaurante, os banheiros da firma, o nosso banheiro, aquele de casa, - todos, exatamente todos – guardam al- guma história. sejam boas ou ruins, são histórias. os banheiros são o grande es- paço da derrota humana, ou não, sempre arquitetados para abrigar apenas um ser humano dentro de si. a cor branca é a cor universal do piso de todos os banheiros do mundo. a claridade, a calmaria, as coi- sas não escritas, transparentes, palavras que não cabem na boca. o branco revela, revela a densa névoa que separa o meu corpo do mundo, a grande derrota. é nesse momento que consigo vis- lumbrar, apesar da evidente mutilação dos meus sentidos, o enfrentamento de minhas maiores derrotas. estou sentada no chão, encostada ao lado da porta do banheiro, a cabeça lateja de dor. não con- sigo relaxar as minhas pernas e aquela posição está desconfortável demais para uma mulher da minha idade. tenho von- tade de levantar e pegar o celular que está em cima da cama e ligar para a mãe de andré. dizer a ela que venha buscá-lo, que venha buscar as coisas dele, que ele está saindo de casa, que eu o estou expul- sando de casa. não tenho coragem. andré enche a boca com a água , de1952 quente que desce do chuveiro. já não era mais criança. o toque frágil dos dedos no corpo delgado e limpo dá sinais do quan- to ama a perfeição das coisas. cospe a água quente nos pés. a fumaça que toma conta daquele cubículo das necessidades embaça a minha visão. não consigo ver o rosto do homem que toma banho a mi- nha frente, ele está se escondendo por de- trás do fino manto de água. ameaça me encarar nos olhos. como se brincasse de deus, finge que não me vê, se escon- de, finge que meu corpo estirado naque- le chão, enquadrado por paredes suadas, não é nada. mexe nos cabelos, os ensaboa. o meu cheiro preferido de xampu. derra- ma espuma nos olhos e imediatamente os fecha, rústico. parece evitar, com nenhuma se- gurança, que a espuma entre em conta- to com os olhos, tenta evitar a irritação trágica que causa ainda mais irritações trágicas posteriormente. mas isso é qua- se sempre tragédia. os banheiros sempre escondem, sejam por amor ou por ran- cor, as maiores tragédias. acho que sou claustrofóbica. não que eu não saiba lidar com o confinamento dos espaços, mas é a dura pena de querer e não querer estar ali. a implicância de andré com a limpeza do corpo é a tentativa obscura de evitar a sujeira dos dias. é não parar para ob- servá-la. na queda e na derrota que me desenham agora, sei bem o que é estar no chão, vasculhando a sujeira dos acon- tecimentos. andré não sorri. é firme e metó- dico na limpeza de cada uma das partes de seu corpo. parece decretar a morte do 8