cansaço do dia, se restaura. da parte que
me cabe no chão, as únicas coisas que
vejo são andré, a fumaça quente do ba-
nho e as coisas que não têm nome.
tenho vontade de levantar e arru-
mar as roupas de andré no armário, dizer
que eu o amo, secar o seu corpo molha-
do, emprestar-lhe minha escova, minha
vida, mas não. a única coisa que ainda
me prende no chão é a certeza da queda,
mas não a minha. não só a minha. como
se brincasse de deus, andré age como se
pudesse ordenar o silêncio de nossas bo-
cas, como se pudesse me sufocar com a
fumaça do banho, como se não devesse
dizer nada, como se não tivesse nada a
dizer. e nunca há. como se brincasse de
deus, andré cria o nosso próprio inferno
íntimo.
presente, frutos de uma mesma árvore.
agora, a traição é a roupa que nos veste.
é ela quem reordena os nossos olhares,
a nossa culpa, o nosso inferno. estou em
busca de caminhos para além deste ba-
nheiro, caminhos impossíveis de fuga,
caminhos cheios de alguma verdade
aparente, caminhos inexistentes e cria-
dos por mim mesma no turbilhão dos
enganos. andré pega a toalha, enxuga os
cabelos, o corpo branco na obscuridade
das palavras. não diz nada. o banheiro é o
nosso altar confesso, meu túmulo.
me seguro na performance divi-
na de andré e me abro para as palavras.
meus olhos estão no alto, na pura e deli-
cada forma de vê-lo pentear os cabelos.
agora eu queria dizer-lhe algo, perguntar
se pagamos a conta da água, se nos preo-
cupamos em contratar um eletricista
ontem, poucas coisas ficaram cla- para verificar a funcionalidade dos fios
ras. não há nada mais claro que a im- do chuveiro. tudo tem um fim destina-
pressão demolidora dos banheiros, não do. os fios do chuveiro, o banho, as pala-
há. com a cara lavada e ingenuamente vras, a dor nas pernas, nós. é necessário
demoníaca, andré desenha o passado e o
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