Madame Eva Mme Eva quinto numero | Page 11

cansaço do dia, se restaura. da parte que me cabe no chão, as únicas coisas que vejo são andré, a fumaça quente do ba- nho e as coisas que não têm nome. tenho vontade de levantar e arru- mar as roupas de andré no armário, dizer que eu o amo, secar o seu corpo molha- do, emprestar-lhe minha escova, minha vida, mas não. a única coisa que ainda me prende no chão é a certeza da queda, mas não a minha. não só a minha. como se brincasse de deus, andré age como se pudesse ordenar o silêncio de nossas bo- cas, como se pudesse me sufocar com a fumaça do banho, como se não devesse dizer nada, como se não tivesse nada a dizer. e nunca há. como se brincasse de deus, andré cria o nosso próprio inferno íntimo. presente, frutos de uma mesma árvore. agora, a traição é a roupa que nos veste. é ela quem reordena os nossos olhares, a nossa culpa, o nosso inferno. estou em busca de caminhos para além deste ba- nheiro, caminhos impossíveis de fuga, caminhos cheios de alguma verdade aparente, caminhos inexistentes e cria- dos por mim mesma no turbilhão dos enganos. andré pega a toalha, enxuga os cabelos, o corpo branco na obscuridade das palavras. não diz nada. o banheiro é o nosso altar confesso, meu túmulo. me seguro na performance divi- na de andré e me abro para as palavras. meus olhos estão no alto, na pura e deli- cada forma de vê-lo pentear os cabelos. agora eu queria dizer-lhe algo, perguntar se pagamos a conta da água, se nos preo- cupamos em contratar um eletricista ontem, poucas coisas ficaram cla- para verificar a funcionalidade dos fios ras. não há nada mais claro que a im- do chuveiro. tudo tem um fim destina- pressão demolidora dos banheiros, não do. os fios do chuveiro, o banho, as pala- há. com a cara lavada e ingenuamente vras, a dor nas pernas, nós. é necessário demoníaca, andré desenha o passado e o 9