Madame Eva Mme Eva quinto numero | Page 12

que eu levante meu corpo do chão, que eu não reconheça mais o chão, e andré possa atravessar a porta do altar branco, levando consigo o incenso da fumaça do banho, levando consigo o pouco que resta de nós, ou nada. me levanto com dificuldade – o chão que já faz parte mim-, e andré passa rapidamente, vira o corpo para o lado de nosso quarto.
me vejo no espelho: agora é meu rosto quem está refletido ali, é aquilo que eu sou agora, aquilo que fomos. talvez eu já reconhecesse o fim destinado das coisas, talvez todas as coisas já conhecessem o seu fim, talvez já soubessem, desde o nascimento, que há morte em todos os lugares.
o espelho embaçado pela fumaça não diz mais nada, é uma cópia do que fomos durante todos esses anos. não totalmente uma mentira, mas nosso casamento fora uma verdade mal construída, mal pensada, e a verdade não rima. a falta de palavras denuncia a exatidão do presente, e andré não consegue secar muito bem a água do corpo. passou por mim como um furacão de silêncio, guardando para si toda e qualquer explicação possível. ignorou minha presença, ignorou meu corpo levantado com dificuldade do chão, ignorou que nada mais é como antes. o ontem aparece como página escrita do hoje, rasurada.
caminho até a porta do banheiro, não há mais nada a ser feito. agora o branco do altar divino é tomado pelo vermelho do meu sangue. eu sangro porque é um corte que se faz na pele, é o rebentar das veias, das nossas veias. andré abre a porta do armário, joga as roupas na cama. o cheiro de mofo e perfume de banho se encontram, passado e presente. é presente a sua falta de palavras. arruma as malas, não questiono. volto ao chão agora gelado do banheiro. não há mais fumaça, nem névoa, apenas a maldita dor de cabeça. o furacão de silêncio havia destruído as palavras do mundo, sufocando-as na sua própria concepção de verdade, no seu próprio infinito. andré não guarda nada de infinito nas malas, não guarda nada. a decomposição de toda a carne amorosa acontece na minha frente, o caminho de quem vai para não voltar, a mentira.
não consigo pensar – e nem devo – em uma música ou poema que possa ser recitado ou cantado quando a natureza costura um adeus tão forte e prematuro no corpo de quem fica. o altar agora se desfaz. não é mais branco ou nulo, abençoado pelas divinas deusas. o barulho dos zíperes se fechando traz-me de volta ao real desassossego da verdade. andré pega as malas todas e atravessa o corredor. com a porta aberta, vejo seu corpo passar por mim, também me atravessando. o cheiro de adeus conforta como lavanda e o banheiro é pequeno demais para meu corpo, não guarda a dimensão das minhas pernas, da minha história.
andré pára na porta do banheiro. como se brincasse de deus, derruba o inferno íntimo já desgastado pela acusação alheia, pela falta das palavras. meus olhos encontram a altivez de andré, a sua verdade crua que não cabe em mim. me encara. já não é mais deus ou criança, é humano. animal que nega a sua própria condição de derrotado. ajoelha-se perto de mim, iguala nossos corpos. usa a camiseta branca que tanto gosto, mas agora é o chão que nos revela.
me beija. o gosto do seu beijo amarga-me a boca. é o que nos resta. o amargo. as mãos grossas alcançam o interruptor, desliga a luz. nosso altar divino adormece nos escombros do silêncio, e é pra isso que os banheiros foram feitos. é pra isso que o amor serve.

10