que eu levante meu corpo do chão , que eu não reconheça mais o chão , e andré possa atravessar a porta do altar branco , levando consigo o incenso da fumaça do banho , levando consigo o pouco que resta de nós , ou nada . me levanto com dificuldade – o chão que já faz parte mim - , e andré passa rapidamente , vira o corpo para o lado de nosso quarto .
me vejo no espelho : agora é meu rosto quem está refletido ali , é aquilo que eu sou agora , aquilo que fomos . talvez eu já reconhecesse o fim destinado das coisas , talvez todas as coisas já conhecessem o seu fim , talvez já soubessem , desde o nascimento , que há morte em todos os lugares .
o espelho embaçado pela fumaça não diz mais nada , é uma cópia do que fomos durante todos esses anos . não totalmente uma mentira , mas nosso casamento fora uma verdade mal construída , mal pensada , e a verdade não rima . a falta de palavras denuncia a exatidão do presente , e andré não consegue secar muito bem a água do corpo . passou por mim como um furacão de silêncio , guardando para si toda e qualquer explicação possível . ignorou minha presença , ignorou meu corpo levantado com dificuldade do chão , ignorou que nada mais é como antes . o ontem aparece como página escrita do hoje , rasurada .
caminho até a porta do banheiro , não há mais nada a ser feito . agora o branco do altar divino é tomado pelo vermelho do meu sangue . eu sangro porque é um corte que se faz na pele , é o rebentar das veias , das nossas veias . andré abre a porta do armário , joga as roupas na cama . o cheiro de mofo e perfume de banho se encontram , passado e presente . é presente a sua falta de palavras . arruma as malas , não questiono . volto ao chão agora gelado do banheiro . não há mais fumaça , nem névoa , apenas a maldita dor de cabeça . o furacão de silêncio havia destruído as palavras do mundo , sufocando-as na sua própria concepção de verdade , no seu próprio infinito . andré não guarda nada de infinito nas malas , não guarda nada . a decomposição de toda a carne amorosa acontece na minha frente , o caminho de quem vai para não voltar , a mentira .
não consigo pensar – e nem devo – em uma música ou poema que possa ser recitado ou cantado quando a natureza costura um adeus tão forte e prematuro no corpo de quem fica . o altar agora se desfaz . não é mais branco ou nulo , abençoado pelas divinas deusas . o barulho dos zíperes se fechando traz-me de volta ao real desassossego da verdade . andré pega as malas todas e atravessa o corredor . com a porta aberta , vejo seu corpo passar por mim , também me atravessando . o cheiro de adeus conforta como lavanda e o banheiro é pequeno demais para meu corpo , não guarda a dimensão das minhas pernas , da minha história .
andré pára na porta do banheiro . como se brincasse de deus , derruba o inferno íntimo já desgastado pela acusação alheia , pela falta das palavras . meus olhos encontram a altivez de andré , a sua verdade crua que não cabe em mim . me encara . já não é mais deus ou criança , é humano . animal que nega a sua própria condição de derrotado . ajoelha-se perto de mim , iguala nossos corpos . usa a camiseta branca que tanto gosto , mas agora é o chão que nos revela .
me beija . o gosto do seu beijo amarga-me a boca . é o que nos resta . o amargo . as mãos grossas alcançam o interruptor , desliga a luz . nosso altar divino adormece nos escombros do silêncio , e é pra isso que os banheiros foram feitos . é pra isso que o amor serve .
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