que se viu foi mais uma perpetuada de-
sagregação do rosto do que uma trégua
eminente, o que colocava em risco todo
o funcionamento do corpo. É que, por
exemplo, quando orelhas se desenten-
dem, vida que segue, uma ouve uma coi-
sa, a outra discorda – no máximo pairam
a dúvida e a confusão. Mas com os lá-
bios, a coisa é diferente.
É coisa séria:
a alimentação fica comprometida, já que
eles fazem de tudo para não se encosta-
rem; a comunicação é prejudicada, pois
palavras com fonemas bilabiais (aquelas
com “Bs”, “Ms” e “Ps”) são evitadas; e, o
que é pior, até o carinho fica abalado,
com sorrisos descompassados e beijos
atravessados.
cada lábio. A briga ainda não estava re-
solvida, mas sem interferências externas,
a língua agora podia negociar uma espé-
cie de cessar fogo, um pacto mínimo que
permitisse a volta da cooperação básica
entre os lábios.
Com a volta dos “Bs”, “Ms”, “Ps”
e com a melhora dos beijos e sorrisos,
os dois lábios conviviam minimamente.
Mas a reconciliação independe do conví-
vio. Era preciso criar uma retórica que
atribuísse um sentido de unicidade onde
antes reinava o individualismo. Fazer
com que os lábios deixassem de se ver
como “lábio superior” e “lábio inferior”,
a favor de um entendimento em que am-
bos se vissem como membros da mesma
O horizonte via-se russo. Todos estrutura bucal. Porque, no fundo, a lín-
sabiam que como estava não podia ficar, gua sabia que a razão por trás de tanta
mas, por outro lado, ninguém apresenta- animosidade era o fato de que os lábios
va solução! Quem estava com o lábio su- se espelhavam nos outros membros da
perior tinha certeza de que o inferior es- face. Como nos olhos, por exemplo, que
tava errado e queriam, porque queriam, apesar de sua função conjunta têm rela-
provar isso. Os partidários do lábio de tiva liberdade de atuação, podendo um
baixo, também. Efetivamente, parecia enganar o outro. Aos lábios não cabe tal
não haver como apaziguar os adversá- autonomia, pelo contrário, é preciso que
rios. Os motivos da briga sumiram da colaborem sempre.
pauta e ninguém discutia soluções, ape-
A solução encontrada foi simples,
nas culpas e ataques pessoais.
e talvez até pouco convincente para quem
O conflito só veio ao fim quando não conhece a força da identidade. Mas
a língua – solitária e poderosa língua, se- a paz aos poucos voltou ao hemisféro sul
nhora da boca e dos discursos – resolveu da cabeça com a vigorosa campanha da
intervir. Sua singularidade por vezes tra- língua para reeducar cada lábio em con-
balhava contra ela, pois enquanto todos flito. Como toda boa pedagoga, a lín-
no rosto têm um par, a língua é relegada gua sabia da importância de trabalhar a
à unicidade dos inúteis e sofre o mesmo autopercepção de cada aluno, para poder,
preconceito que o queixo e que a testa. então, mudar sua visão de mundo. No
Mas em matéria de boca, sua autoridade final, os lábios se reconciliaram graças
era inquestionável e todos reconheciam à intervensão obstinada da língua, que
bem sabia que as brigas raramente ter-
ali sua área de influência.
minam porque um rival muda a opinião
Ágil como sempre, sua primeira que tem do outro, mas que, pelo contrá-
providência foi isolar a esfera do emba- rio, se resolvem sempre que ambos mu-
te: tratava-se de um problema de boca dam a opinião que têm de si.
e assim deveria ser resolvido. Esvaziou
os discursos dos de fora e deslegitimou
o apoio das pálpebras e das têmporas a
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