Madame Eva Mme Eva quinto numero | Page 8

que se viu foi mais uma perpetuada de- sagregação do rosto do que uma trégua eminente, o que colocava em risco todo o funcionamento do corpo. É que, por exemplo, quando orelhas se desenten- dem, vida que segue, uma ouve uma coi- sa, a outra discorda – no máximo pairam a dúvida e a confusão. Mas com os lá- bios, a coisa é diferente. É coisa séria: a alimentação fica comprometida, já que eles fazem de tudo para não se encosta- rem; a comunicação é prejudicada, pois palavras com fonemas bilabiais (aquelas com “Bs”, “Ms” e “Ps”) são evitadas; e, o que é pior, até o carinho fica abalado, com sorrisos descompassados e beijos atravessados. cada lábio. A briga ainda não estava re- solvida, mas sem interferências externas, a língua agora podia negociar uma espé- cie de cessar fogo, um pacto mínimo que permitisse a volta da cooperação básica entre os lábios. Com a volta dos “Bs”, “Ms”, “Ps” e com a melhora dos beijos e sorrisos, os dois lábios conviviam minimamente. Mas a reconciliação independe do conví- vio. Era preciso criar uma retórica que atribuísse um sentido de unicidade onde antes reinava o individualismo. Fazer com que os lábios deixassem de se ver como “lábio superior” e “lábio inferior”, a favor de um entendimento em que am- bos se vissem como membros da mesma O horizonte via-se russo. Todos estrutura bucal. Porque, no fundo, a lín- sabiam que como estava não podia ficar, gua sabia que a razão por trás de tanta mas, por outro lado, ninguém apresenta- animosidade era o fato de que os lábios va solução! Quem estava com o lábio su- se espelhavam nos outros membros da perior tinha certeza de que o inferior es- face. Como nos olhos, por exemplo, que tava errado e queriam, porque queriam, apesar de sua função conjunta têm rela- provar isso. Os partidários do lábio de tiva liberdade de atuação, podendo um baixo, também. Efetivamente, parecia enganar o outro. Aos lábios não cabe tal não haver como apaziguar os adversá- autonomia, pelo contrário, é preciso que rios. Os motivos da briga sumiram da colaborem sempre. pauta e ninguém discutia soluções, ape- A solução encontrada foi simples, nas culpas e ataques pessoais. e talvez até pouco convincente para quem O conflito só veio ao fim quando não conhece a força da identidade. Mas a língua – solitária e poderosa língua, se- a paz aos poucos voltou ao hemisféro sul nhora da boca e dos discursos – resolveu da cabeça com a vigorosa campanha da intervir. Sua singularidade por vezes tra- língua para reeducar cada lábio em con- balhava contra ela, pois enquanto todos flito. Como toda boa pedagoga, a lín- no rosto têm um par, a língua é relegada gua sabia da importância de trabalhar a à unicidade dos inúteis e sofre o mesmo autopercepção de cada aluno, para poder, preconceito que o queixo e que a testa. então, mudar sua visão de mundo. No Mas em matéria de boca, sua autoridade final, os lábios se reconciliaram graças era inquestionável e todos reconheciam à intervensão obstinada da língua, que bem sabia que as brigas raramente ter- ali sua área de influência. minam porque um rival muda a opinião Ágil como sempre, sua primeira que tem do outro, mas que, pelo contrá- providência foi isolar a esfera do emba- rio, se resolvem sempre que ambos mu- te: tratava-se de um problema de boca dam a opinião que têm de si. e assim deveria ser resolvido. Esvaziou os discursos dos de fora e deslegitimou o apoio das pálpebras e das têmporas a 6