Para os conhecedores do jogo po-
lítico facial, poucas verdades são tão cer-
tas quanto o conflito permanente entre
os lábios: pra quem não sabe, briga de
lábios não é coisa infrequente. Existe
uma rivalidade natural entre eles, o que
por si só não é de todo preocupante, pois
as outras partes do rosto sempre dão um
jeito de colocar panos quentes e minimi-
zar qualquer extrapolação das vaidades.
Não é à toa que os rostos mais tranquilos
são aqueles de lábios finos, menos infla-
dos por manias de grandeza e mais fáceis
de serem domados – em especial aqueles
com apenas um filete mínimo de lábio
superior; naturalmente, entre os dois, os
de cima são considerados os mais bri-
gões.
Como em toda briga, os amigos
de cada lábio começaram a se solidarizar
e a construir um discurso coerente em
defesa de quem achavam estar com a ra-
zão. As duas narinas estavam com o lá-
bio superior, por uma questão de proxi-
midade; as bochechas, sensíveis
que são, articulavam pela
inocência do lábio infe-
rior. De resto, o rosto
se configurava como
um tabuleiro de in-
teresses cruzados:
a orelha direita
e o olho esquer-
do pediam pelo
lábio de baixo;
o olho direito
e a orelha es-
querda, pelo
de cima. Os
dentes não se
entendiam:
a
esperada
aliança
re-
gional não se
verificou, com
os incisivos do
arco superior se
juntando ao lá-
bio de baixo e os
molares do arco
inferior se juntando
ao lábio de cima.
Apesar de tantos
apelos, a paz não veio e o
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bava de sua rigidez para manter a boca
fechada e acusava o outro de passar a
noite frouxo, deixando a saliva escorrer
boca afora, o inferior se dizia persegui-
do pelas leis da natureza. A tal da lei
da gravidade, sim, ela sempre o colocava
em desvantagem! Por que que nada nun-
ca escorre pra cima? Tudo sempre só cai
pra baixo, que culpa tinha ele...?