Jornal do Clube de Engenharia 599 (Fevereiro de 2019) | Page 3
FEVEREIRO DE 2019
MEMÓRIA
Engenharia e desenvolvimento devem ser compatíveis
com a preservação da memória e da cultura
A primeira ação foi a expropriação
de uma centena de fazendas para a
construção, em 1909, de uma bar-
ragem em Ribeirão das Lajes. No
entanto, a falta de controle e de
planejamento da obra resultaram em
um surto de malária que matou um
grande número de moradores de São
João Marcos.
Mas o Rio de Janeiro continuou pre-
cisando de água. E novo sacrifício foi
imposto à cidade quando, em 1938, a
Light propôs o alagamento de toda a
região para que fosse possível altear
a barragem. A reação do Serviço de
Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN), que tombou a
cidade como patrimônio nacional
para impedir a obra, foi em vão. O
presidente Getúlio Vargas revogou o
tombamento e autorizou a retirada
dos moradores e a imediata demoli-
ção das casas.
As águas não atingiram toda a área
demolida, mas a cidade desapare-
ceu. Segundo o olhar do arquiteto
Mozart Serra, diretor do Instituto
Light, responsável pela concepção e
coordenação do Parque Arqueológico
e Ambiental de São João Marcos, vai
subsistir na memória dos seus poucos
habitantes sobreviventes, “e subsistirá,
também, na paixão despertada em
alguns estudiosos e aficionados por
sua história e tragédia”.
Perplexidade
Ainda nos anos 2000, o engenheiro
Luiz Edmundo Costa Leite, con-
selheiro do Clube de Engenharia e,
na ocasião, professor da Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro, foi
convidado pelo então presidente da
Light, o também conselheiro Luiz
Alquéres, para conhecer a história
de São João Marcos.
“Achei essa história tão incrível que
acabou virando uma das pautas da
minha vida, inclusive em sala de aula”,
conta Luiz Edmundo, emocionado.
“Era uma cidade próspera, com um
mistério até hoje não esclarecido:
como a água não chegou na cota de
inundação prevista?”. Divulgar a his-
tória de São João Marcos, desconheci-
da até mesmo entre engenheiros, pas-
sou a ter uma importância ímpar. “Foi
uma obra de engenharia que provocou
um dano irreparável do ponto de vista
histórico, humano e arquitetônico, e
sem muita explicação”, lamenta.
Com a curiosidade aguçada, o conse-
lheiro constatou que o tema foi pauta
de discussão no Clube de Engenharia
no passado: matérias publicadas em
cinco edições da revista da Casa, de
1934 a 1937, divulgam divergências
de posições e, finalmente, a defesa da
instituição ao alteamento da barra-
gem e inundação da cidade.
O resgate
Profundo conhecedor da história,
Alquéres vai direto ao assunto. “O
Governo Federal propôs à Light
fazer a barragem um pouco mais alta,
para a água poder ser usada no abas-
tecimento do Rio. Havia um duplo
objetivo: a energia elétrica estava em-
butida no investimento dos recursos
necessários para levar água à popula-
ção do Rio. Era um negócio estranho
à Light. Mas assim foi feito”.
“Os tempos eram de rolo compressor,
entre 1935 e 1937, pouco antes da
Segunda Guerra Mundial, em plena
ditadura de Getúlio Vargas. É lógico
que o projeto poderia perfeitamente
prever a construção de diques para
A freguesia de São João Marcos nas-
ceu em 1739 e viveu tempos de glória
como importante cidade durante o
Ciclo do Café. No início do século
XX a compra de uma fazenda da
região pela Light, então pertencente
à companhia canadense Light and
Power, daria início a uma surpre-
endente e trágica história que tem
origem nos problemas de abasteci-
mento de água e geração de energia
elétrica para o Rio de Janeiro, então
capital federal.
proteger e salvar a cidade. Foi tom-
bada porque sua importância era
evidente”, afirma. Do ponto de vista
técnico não tem dúvida de que a obra
de distribuição de água foi impor-
tante para o Rio. “Mas a geração de
energia, também importante, poderia
trazer a linha de transmissão de outro
lugar”, critica.
Considerando que “Engenharia e
desenvolvimento não podem ser
incompatíveis com a preservação da
memória e da cultura” e que o des-
tombamento de São João Marcos foi
um erro de projeto por não avaliar
sua importância cultural, foi sob sua
responsabilidade que, em 2006, os
sobreviventes e a cidade foram resga-
tados da invisibilidade.
Era um compromisso moral e ético
estar à frente do projeto do qual hoje
muito se orgulha: criar, a partir das
ruínas, o Parque Arqueológico e Am-
biental de São João Marcos. “Outro
presidente não faria isso. Tanto que
a Light está tendo muita dificuldade
de manter o projeto vivo. O Parque é
muito bonito. Nasceram muitas árvo-
res chamadas mulungus, com flores
vermelhas, que o pessoal diz que é o
sangue dos que morreram de tristeza.
Tem toda uma mística! Vale a pena
visitar”, convida.
Com vestígios de fundações e ca-
sas, um Centro de Memória e um
Anfiteatro, o Parque Arqueológico
e Ambiental de São João Marcos,
inaugurado já na gestão de Jerson Kel-
man à frente da Light, está situado no
município de Rio Claro, às margens
da represa de Ribeirão das Lajes e da
antiga Estrada Imperial que ligava
Mangaratiba às Minas Gerais.
São João Marcos, primeira cidade histórica brasileira tombada pelo SPHAN e logo depois destombada e
demolida para a ampliação do complexo hidrelétrico de Ribeirão das Lajes.
Leia mais no Portal do Clube de En-
genharia: http://bit.ly/SãoJoãoMarcos.
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