Hatari! Revista de Cinema #06 Cinema Nórdico | Page 9

E é justamente por isso que Ordet é o mais harmonioso e singelo dentre aqueles que se propõem a falar de Deus no cinema.
Desde o principio, o realizador atribui dois elementos que vão percorrer a obra até o final: o extra campo e planos mais abertos. Essas escolhas estilísticas feitas por Dreyer parecem estranhas a principio, mas tornam-se compreensíveis quando consideradas em conjunto com a história que o autor quer nos contar. A trama trata de fé, religião e ressurreição, e não poderia ter sido elaborada de maneira tão graciosa se não fossem por estas escolhas.
O ritmo em Ordet manifesta--se pelo relógio localizado na sala, e é por ele que sentimos a presença do tempo, uma vez que o pulsar das batidas percorre toda a trama. Essa fixação com o tempo em Ordet traz a nós um sentimento de espera, ele simboliza a morte de Inger quando seu marido vai a ele e suspende as batidas, declarando o horário da morte de sua esposa, e retorna somente no final, depois de Johannes despertar a esposa do irmão, quando Anders caminha em direção ao relógio e o ajusta para o horário atual. A obra encerra-se com a frase de Mikkel,“ Agora a vida retorna a nós”, sugerindo assim a morte momentânea da família junto com a de Inger e a ressurreição de todos com a volta dela.
A composição estílistica em Ordet é bastante peculiar. Pela maior

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parte da obra, Dreyer deliberadamente utiliza uma série de artíficios que, inicialmente, são bastante atípicos, como a não utlização de closes e planos e contra-planos que estão, em grande parte, ausentes no filme. Outro aspecto particular de Ordet é que a ação e os conflitos não se diferem no decorrer da obra e a evolução da narrativa só existe porque os artíficios utilizados por Dreyer e a trama trabalham tão perfeitamente em sincronia a ponto da trama e o estilo tornarem-se um só até o final da obra.
Essa estruturação pode ser exemplificada com o início do filme. Logo após sermos apresentados a fazenda, vemos Johannes caminhando em direção a um pequeno morro. Se levássemos em consideração determinadas regras, especularíamos logo de início que o filme desenvolveria o passado e os motivos que levaram Johannes à loucura. No entanto, depois de Johannes recolher-se em seu quarto, somos apresentados às preces não atendidas de seu pai e ao fato de que Anders, filho mais novo, se vê apaixonado por Anne, filha do alfaiate que tem uma religião diferente da família. A partir daí, toda a trama gira em torno dos dois patriarcas e de uma possível reconciliação entre os dois, até que Inger cai misteriosamente doente e acaba por perder seu filho e morrer. Essa elaboração do enredo implica a espera exercida por cada um dos membros da família
Borgen para que os problemas que são levantados encaixem-se em seus determinados lugares. Deste modo fica clara a intenção de Dreyer de desenvolver seu estilo totalmente em sincronia com a trama do filme.
Ordet também chama a atenção para a importância e a veracidade do extracampo, mais uma vez em conjunto com a extensa duração dos planos. A utilização do extracampo permite a Dreyer revelar os personagens ocupando determinados espaços de maneira gradual. A não utilização do plano e contra--plano tem uma relação direta com o extracampo empregado pelo realizador. É justamente por querer ocultar do público quem tem o poder da oração durante as cenas que, no decorrer da obra, Dreyer nos deixa à deriva dos rostos em primeiro plano para dar valor à palavra mais do que à expressão, nos mostrando que nem sempre o que vemos é o que temos. Esses dois recursos trabalhados pelo realizador declaram a habilidade de Dreyer em conseguir moldar um universo no qual a composição e a trama caminham lado a lado, deixando a certeza de que mesmo aqueles que não estão em cena possuem uma força tão grande quanto aqueles que ali estão.
O extracampo também é bem utilizado nos momentos em que Dreyer segue um personagem para revelar outro. Na cena em que Mikkel retira-se do quarto para pegar um balde isso fica claro. O corte

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seguinte a esse mostra Karen acendendo a lamparina na mesa e Mikkel entrando pelo lado esquerdo do quadro indo em direção à cozinha. Depois de uma conversa com Morten, Mikkel deixa o quadro e passamos a seguir seu pai que vai em direção à mesa, expondo a presença de Johannes sem sabermos ao certo há quanto tempo se encontra ali.
Até o desfecho da obra, o realizador faz uso da composição de planos longos associado à movimentação dos atores no quadro e fora dele também, entretanto, no momento mais importante do filme, Dreyer recorre ao cinema clássico para trazer à tona a tão esperada graça de Deus. Ao omitir a utilização de certos artifícios fílmicos mais convencionais pela maior parte da trama, Dreyer escala o potencial de impacto reservado para o final a um outro nível, deixando claro que, tratando--se do estilo empregado pelo autor no decorrer do filme, o estranho se torna familiar, e quando o familiar é então utilizado ele se torna estranho, gerando uma comoção muito maior para com o feito realizado por Johannes. Essa mudança tão repentina invoca toda a dramaticidade esperada, por todos, para o desfecho milagroso. Os planos mais próximos e os planos de reação frente ao milagre nos deixam bestificados e maravilhados com o que acaba de acontecer. O impacto suspende qualquer necessidade de fala