Hatari! Revista de Cinema #06 Cinema Nórdico | Page 10
e dá lugar ao beijo, ao amor carnal
entre Mikkel e Inger. É como se o
realizador reservasse estes rostos,
ocultados até então, para trazer à
tona toda a perplexidade diante do
acontecimento.
Neste universo construido
por Dreyer, no qual a força divina
é tão presente, torna-se evidente a
falta de fé que habita estes persona-
gens. Morten acredita que há mui-
to tempo Deus deixou de escutá-lo.
Mikkel transparece uma revolta em
relação ao assunto, deixando para
sua esposa, Inger, a responsabilida-
de de cuidar e guiar todos os mem-
bros da família por este momento
tão sombrio. Johannes exterioriza
essa falta de crença quando diz que
as pessoas deixaram de acreditar
em milagres. É somente pela crian-
ça, Maureen que podemos presen-
ciar a verdadeira força divina. Essa
relação tão pura entre ela e Deus
se concretiza quando Johannes diz
ao final do filme que a criança é “a
melhor no reino de Deus” e, em se-
guida atende ao pedido da sobrinha
de trazer sua mãe de volta à vida.
O realizador quebra a barrei-
ra normalmente criada entre o na-
tural e o sobrenatural, criando um
universo onde Deus é facilmen-
te encarnado no cotidiano des-
tas pessoas que acompanhamos.
Dreyer trata de não reservar a fé
a uma manifestação meramente
psicológica, uma vez que, para ele,
a fé habita o mesmo espaço que
os elementos materiais da trama.
Por fim, Dreyer opta por simboli-
zar o cristianismo muito mais na
ressurreição do que na crucificação
de Cristo, tratando a presença de
Deus como algo belo e simples. Ao
final, quando Johannes volta para
trazer Inger de volta à vida, esse ato
torna-se tão natural quanto o fato
de que o filho do casal está morto.
Dreyer acredita que Deus ama tan-
to os nossos corpos quanto as nos-
sas almas, e que Ele quer estar en-
volvido não somente na nossa vida
espiritual, mas na material também.
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as máscaras
PERSONA,
E O TRAVELLING
Por Matheus Petris
Persona é uma palavra italia-
na derivada do latim que podemos
traduzir como máscara. Carl Gustav
Jung desenvolveu uma teoria sobre
a ‘Persona’, tendo em vista a necessi-
dade humana de se adaptar às con-
dições a ela apresentadas. Nossas
máscaras são como papéis sociais,
são nossos próprios personagens
perante a sociedade. Bibi Anders-
son (Alma) e Liv Ullmann (Elisabet
Vogler) são, além de personagens,
máscaras. É uma espécie de com-
plementação, uma possui as carac-
terísticas ausentes na outra; elas
se utilizam para ultrapassar seus
limites, se aperfeiçoarem e apren-
derem juntas. “É o estado em que
o indivíduo ultrapassa seus limites,
ocupa uma extensão que não lhe
compete, apropriando-se de qua-
lidade e conteúdos situados além
de suas fronteiras” (CALLUF, 1969,
p.118).
Estamos vendo um fil-
me, a metalinguística usada por
Ingmar Bergman já nos planos ini-
ciais quer nos alertar a todo custo:
isto é um filme, pense-o como um
filme – o rolo é inserido no proje-
tor, o filme é projetado. Entre al-
gumas imagens, é também anun-
ciada a crucificação, como uma
espécie de alerta ao pecaminoso.
Plano aberto, Alma entra pela
porta, eis o “verdadeiro” início do fil-
me. Em um primeiro momento, não
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