Hatari! Revista de Cinema #06 Cinema Nórdico | Page 11

visualizamos aquela que lhe explica, que lhe fala, há uma ausência do plano e contraplano, só vemos Alma, em diversos closes diferentes. Quem será a interlocutora? Nesse momento, não importa. A passagem pela porta ocorre novamente( em elipse). Ela conhecerá Vogler pela primeira vez, e já de início percebe um olhar maligno vindo dela. Por quê? O medo de Alma impossibilita-a de ver de outro modo? Talvez. A‘ Irmã’ – novamente ausente no contra--plano, lhe explica. Diferentemente de Carl Theodor Dreyer – que teve um filme desdobrado nesta edição da revista –, a ausência do plano e contraplano aqui tem uma explicação e motivo narrativos, que serão desvendados ao decorrer do filme.
A ausência de movimentações de câmera implica uma singularidade acerca dos cenários e personagens. A ausência de tais movimentações será levada ao limite e, quando for rompida, proporcionará um dos momentos mais belos do filme. Em quase todos os planos, a mise-en-scène é construída exclusivamente através dos corpos, tendo em vista que eles são o ponto crucial do filme; as máscaras continuam a subsistir e se auto interferir.
Os extensos diálogos e confissões trazem aquilo de comum em Ingmar Bergman, seja em Morangos Silvestres ou em O Sétimo Selo. A importância dos crivos diálogos se mostra um essencial elemento para conhecermos as Personas de Alma e Vogler, que desde o início se mostram resistentes uma à outra e, aos poucos, começam a se abrir e a sentirem-se mais livres perante os julgamentos. A quietude da praia e do mar tentam passar sensação de calmaria, contrariando a real situação vivida entre elas. Esse mar avançando também retornará como argumento, e nos fará sermos arrebatados em um futuro momento.
A confiança por elas estabelecida durante a estadia terá um fim. A confusão entre as máscaras de enfermeira-paciente tomará conta da narrativa e nos afetará diretamente, até o momento catártico. Quando o limite entre elas é quebrado, uma briga física é anunciada e, enfim, o medo e o pavor tomam conta das relações. A catarse é sobreposta na sequência de tapas, cuspidas, e quando o sangue escorre. A indolência de Vogler é rompida na cena em que o limite é ultrapassado, a ameaça de ser encharcada de água fervendo faz com que Vogler, em um momento único, se sinta indefesa, com medo e subjugada. Ela sente um medo real da morte, tal como aponta Alma. As máscaras se subtraem e se sobrepõe ao mesmo tempo, a indiferença é deixada de lado. A briga continua e a mágoa se atenua. Assim é chegado o momento de romper a fixidade dos planos, é chegado o momento do travelling.
A catarse é contínua, assim como os dois planos em sequência que virão. O mar sinaliza a imensidão e a calmaria que comentei acima; mas, aqui, ele faz o inverso. Alma corre para buscar sua redenção com Vogler, e a câmera as acompanha. Arbustos escondem, pouco podemos ver, elas caminham não sobre a areia da praia e, sim, sobre as pedras, que são como obstáculos, que inclusive são por elas perpassados. O primeiro travelling chega ao fim, no momento que em primeiro-plano observamos Vogler a olhar julgando Alma e, numa espécie de subjetividade, vemos o rosto de Alma, completamente arrependida. Vogler some do quadro. O segundo travelling se inicia, agora mais distante e ainda mais difícil de enxergar Alma correr, os arbustos impedem a nossa visão, ela percorre as pedras, apenas ela está presente nesse plano, tanto nós como ela nos perguntamos: onde Vogler foi, está? É um momento de revelação para nós e um momento de revelação para ela. Se a revelação ocorre aqui, ela é ainda mais atenuante na repetição do monólogo entre Alma e Vogler, quando literalmente as máscaras se completam, se sobrepõem. O inconsciente torna-se o consciente, ou vice-versa?
Essa revelação pode também ser tida como liberdade de escolha, uma liberdade que Ingmar Bergman nos dá. Assim como ele assume repetidamente se tratar de um filme, ele também o explica nos entremeios, sendo os dois travellings um exímio exemplo disto. Utilizarei

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das palavras de Mário Alves Coutinho que, utilizando da teoria Baziniana, explica melhor essa relação:“ Em vários de seus ensaios ele se estende sobre a ideia de que o uso do plano-sequência e da profundidade de campo dá ao espectador a liberdade de escolher e ajustar os elementos mais importantes, dando seu sentido ao que vê”( O Realismo Impossível, 2016, pag. 26). A relação da teoria Baziniana com Bergman é bem distante do ponto de vista do real, mas serve como base para o travelling em questão. Por falar no não-real, no meio e final, somos avisados novamente: um filme está sendo rodado. Tudo o que vemos / vivemos são máscaras, entre elas, entre nós, entre o cinema.
A cena da crucificação, que se repete ao longo do filme, insere também um aspecto religioso, a culpa pelo pecado, pelo aborto, pela traição, pela orgia. Por mais que a religião não seja o julgamento final, ela está sempre implícita em Bergman.“ Bergman, além disso, é o cineasta metafísico. Homem educado numa família protestante, numa educação religiosa muito rígida, abandonou depois a crença, tornou-se agnóstico, mas a obsessão religiosa ficou sempre na obra dele, quer sob os aspectos de negação profunda, quer na busca desse silêncio de Deus, das razões pelas quais Deus se manifesta ou não se manifesta.”( João Bénard da Costa, publico. pt, 2007)
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