Hatari! Revista de Cinema #06 Cinema Nórdico | Page 7
em primeiro plano, ele se distancia
no mar cada vez mais até desapa-
recer completamente atrás de uma
pedra.
A forma como a sequência foi intro-
duzida quebrou minhas expectativas
do que se mostrava até então, a his-
tória de amor de dois amantes con-
tra o mundo, decisão que demons-
Dentro de um sistema ainda
tra o interesse em se aprofundar na
tão dependente da amplitude dos
complexidade da natureza humana.
gestos para se fazer compreensí-
vel, chama atenção os momentos Sjöström, interpretando o
em que se confia na sutileza para protagonista do filme, compõe um
sustentar o drama. O ápice desta personagem de força descomunal,
postura ocorre no plano em que o capaz de fugir da prisão torcendo
protagonista é mostrado de costas, grades de ferro e erguer sozinho uma
sentado e imóvel diante da imen- arca de dinheiro até o sótão. Halla,
sidão do mar enquanto enfren- a viúva, enfrenta destemidamen-
ta a miséria. Me parece um desses te seu cunhado
momentos de descoberta das assediador, cor-
potencialidades da imagem de cine- re de seus per-
ma como cristalizador de uma bele- seguidores pe-
za ontológica das coisas e do seres. las montanhas
geladas e toma
a decisão de sa-
O F ora da L ei e sua M ulher (1918)
A narrativa conta a vida de crificar sua pe-
Evjind, homem foragido após rou- quena filha no
bar uma ovelha para sua família, abismo para que
que passava fome no rigoroso inver- esta não caia na
no. Sob outra identidade, encontra mão de seu inimigo. Estes dois seres
emprego na fazenda de uma viúva, de fibra são jogados em uma paisa-
acabando ambos se apaixonando. gem de penhascos, cascatas e ne-
Quando é descoberto, a mulher vascas. A força humana sucumbe e
deixa sua vida de posses para trás os dois morrem congelados, restan-
e foge com ele, vivendo nas monta- do no plano final a paisagem vazia
nhas em uma felicidade que com o da natureza em sua força imutável.
passar dos anos se corrói na miséria.
A C arruagem F antasma (1921)
Não consigo falar deste
Chegamos então ao dito fil-
filme sem louvar justamente seu me preferido de Bergman. Aqui,
ato final, uma série de quadros dos concretiza-se visualmente a lenda
dois personagens já envelhecidos, de uma carruagem que recolhe as
desgastados física e mentalmen- almas e troca seu comandante ao
te, atormentados pelo frio, fome e final de cada ano pela última pes-
seus arrependimentos do passado. soa a morrer na noite de Ano Novo.
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Passeamos pela vida do persona-
gem central, de novo, vivido por
Sjöström, um homem corrompido,
impassível aos apelos de quem ten-
ta lhe dignificar novamente. Apenas
a experiência da morte e a nova vida
que ganha conseguem lhe redimir.
flores e depois todos se reúnem
enquadrados sob uma árvore cujas
folhas balançam com a brisa leve.
Um respiro na tensão carregada que
domina a narrativa, mas que, por
comparação, nos mostra o tamanho
da decadência na vida desse homem.
Começamos em um tem-
po presente, com uma agonizan-
te salvacionista clamando por
uma última visita de David Holm,
o protagonista. Os dez minutos
iniciais apresentam o personagem
principal sem mostrá-lo. Vemos
a repugnância da mãe da enfer-
ma pelo homem, a procura deste
em um bar, sua família desampa-
rada, até chegarmos finalmente à
Num filme que aborda a pas-
primeira imagem de Holm, já car-
sagem da vida para a morte, chama
regada de significação do seu
a atenção o número excessivo de
caráter pelas construções anteriores.
vezes em que personagens abrem
Com a licença da aparição da e fecham portas, alterando a con-
morte, dotada de onisciência, o filme figuração visual de figura e fun-
fragmenta-se temporalmente, recu- dos e permitindo enquadramentos
ando a tempos diferentes e retor- dentro do enquadramento. Porém,
nando ao inicial. Dentro deste jogo, mais do que grafismos visuais, essa
estas imagens do passado não nos repetição na misé-en-scène tam-
atingem como representações dire- bém reforça a constituição do mun-
tas dos fatos, são conscientemente do dos vivos como um ambiente de
carregadas pelo peso da lembrança enclausuramento. O protagonista,
de alguém que morreu e vê sua vida que, vivo, chega a quebrar uma por-
em perspectiva. Por isso, é de uma ta a machadas para conseguir sair,
beleza e melancolia simultânea o quando morto atravessa portas sem
episódio de felicidade de Holm e que estas ofereçam resistência. O
sua família no campo. Sob a luz do corpo e o ambiente são colocados
dia, em um filme majoritariamente como materialidades físicas limi-
noturno, Holm brinca com sua fi- tantes, ideia transcrita na frase do
lha na água, a esposa despeja água cocheiro da Morte que ordena que
fervente de uma panela enquanto o uma alma saia do corpo dizendo:
vapor sobe, a criança menor colhe “Prisioneiro, abandone sua prisão!”
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