e crianças como tantos outros filmes do mesmo gênero ? Como o próprio livro faz ?
Deixa Ela Entrar , contra todas as possibilidades , é um filme sutil . É sutil ao perceber a responsabilidade de se colocar algo dessa natureza em imagens , ao perceber que não era necessário que Hakan fosse explicitamente um pedófilo e que explicitamente estuprasse suas vítimas antes de matá-las . Não era necessário mostrar a relação abusiva que mantinha com Eli , uma criança . Não era necessário mostrar que ele a via nua e a tocava em troca de prover comida a ela . Não era necessário . Não é , nunca é .
Nós percebemos , no filme , algo de estranho em Hakan e na forma como ele age com Eli , uma devoção cega que ficamos em dúvida se é paternal ou sexual , mas também não ficamos sabendo com certeza . Não importa . Na verdade , Hakan não tem importância nenhuma , sua passagem pelo filme é rápida e ele fracassa tantas vezes tentando conseguir sangue para Eli que o personagem acaba se caracterizando como patético . Ele não tem controle nenhum sobre ela , sua condição de homem adulto que geralmente garantiria um status de poder em relação às crianças do filme se perde . Ao invés disso , quem fica no controle é Eli . E se no livro realmente fica mais explícito que Eli poderia ser um homem pedófilo ,
Alfredson trata do assunto de forma diferente . Sabemos que ela seria mais velha em anos , por causa da sua condição de vampira , mas seu corpo e sua mentalidade são de uma criança . Eli é inocente , dependente de um adulto e a única pessoa com quem tenta fazer contato ao invés de matar é Oskar , outra criança . É o que os conecta , viverem em um ambiente de violência adulta , mas ainda tentando ser crianças , juntos . É com Oskar que Eli irá deitar na cama inocentemente , resolver cubos mágicos e dançar na sala . Eli entende a solidão de Oskar e o ajuda a ter confiança o suficiente para revidar as agressões que sofre .
A cena em que vemos a mutilação na genitália de Eli , sugerindo sua castração e , portanto , que fora em algum momento de sua vida um menino , é muito rápida , quase que imperceptível . Alfredson não tem intenção alguma em se aprofundar no assunto , talvez porque , assim como Hakan , realmente não importe e talvez porque , também como Hakan , não é necessário . Por que violentar crianças em uma história que já é perturbadora o suficiente ? Por que discutir a sexualidade de Eli numa relação que não é e nem deve ser sexual ? São essas sutilezas que me agradam em Deixa Ela Entrar . O senso de escolha entre o que vale a pena ser mostrado e o que não vale , entre a construção de personagem e do gênero a qual pertence e uma saída fácil de roteiro .
Mas é também o conforto que o filme me dá ao estabelecer uma equidade de poderes , em que adultos não agridem crianças e essas só se agridem entre si numa violência até sangrenta , mas não necessariamente explícita . E eu digo conforto porque é a disparidade de poder entre homens e mulheres , por exemplo , que me deixa tão inquieta vendo filmes violentos , em que mulheres estão quase sempre na condição de vítimas , amarradas , presas , psicologicamente instáveis , enquanto passo uma hora inteira apreensiva que a qualquer momento alguma cena de estupro possa surgir . É nesse sentido que considero a vingança de Lisbeth contra seu estuprador em The Girl uma das sequências mais insensíveis que eu já tenha visto , sendo ficção ou não . Não só é completamente desumano que Lisbeth tenha que se sujeitar a um novo estupro para conseguir sua vingança numa decupagem desnecessariamente expositiva para , num presente ao espectador , finalmente torturar seu agressor , como ainda pode causar uma falsa impressão de que dialoga com o feminismo . É o que tem se chamado de “ filmes com mulheres fortes ”, com personagens que se impõem e conseguem se defender sozinhas , lutam e falam o que pensam e , apesar de Lisbeth possuir todas essas características , por que ela permanece tão vulnerável aos homens ao seu redor ? Por que mesmo após sua vingança , eu continuo temendo por ela ?
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Como tantos outros textos escritos por outras mulheres antes de mim sobre o mesmo assunto , talvez eu ainda precise dizer que o cinema pode e deve ser um bom aliado para abordar a temática do estupro - e que eu nunca diria o contrário - , mas é preciso cautela e paciência ao discutir as inúmeras maneiras de se fazer isso . É preciso ter sensibilidade mesmo em universos fílmicos completamente insensíveis , é preciso ter consciência do poder explicitador que o audiovisual tem mesmo quando sua intenção é completamente implícita . Deixa Ela Entrar entre suas sutilezas e violências encontra o meio termo daquilo que se mostra e daquilo que se interpreta , sem realmente perder nenhum dos dois ao longo do caminho .
É por isso que se me perguntarem se é possível discutir o estupro no cinema , eu direi que sim e citarei um ou dois filmes a mais .