Hatari! Revista de Cinema #06 Cinema Nórdico | Page 23

SOBRE TODOS OS FILMES QUE

A primeira crítica que li sobre o filme Deixa Ela Entrar ( 2008 ) do diretor Tomas Alfredson fazia uma breve comparação ao livro do qual foi adaptado , escrito pelo também roteirista do filme John Ajvide Lindqvist , dizendo “ Na verdade , o filme é muito mais implícito no que se refere à história central . No livro fica claro que Eli é um homem e um pedófilo ”. A partir daí eu havia decidido que não veria Deixa ela entrar . Em três anos de faculdade de cinema eu evitei o máximo de filmes que tivessem estupros e pedofilia independentemente do seu suposto grau de relevância artística . Eu evitei Irreversível ( Gaspar Noé , 2002 ) e o O Último Tango em eu não vi

Por Hanna Esperança

Paris ( Bernardo Bertolucci , 1972 ). Evitei Lars Von Trier e Polanski . Evitei até mesmo Game of Thrones . Eu fiz isso pela minha saúde mental , coisa que decidi em 2010 após ver a sequência de estupros da personagem Lisbeth Salander no filme também sueco The Girl With the Dragon Tattoo ( Niels Arden Oplev , 2009 ). Sequência que me causou tanto mal estar que nunca consegui assistir por inteira , da mesma forma que também nunca tive coragem de rever as mesmas cenas com uma decupagem diferente no remake de Fincher . Algumas pessoas poderiam me falar que isso é algo bom , que se The Girl conseguiu causar esse tipo de reação em mim é porque o filme cumpriu seu papel artístico-social . Mas o soco no estômago que dizem ser tão necessário não me choca nem um pouco . Não me choca talvez , só talvez , porque na minha condição de mulher eu esteja cansada de ouvir sobre essa realidade e temer por isso . Eu não preciso de dados estatísticos e eu certamente não preciso de alguns minutos de estupro explícito em widescreen para que eu saiba o quão grotesca essa violência é . E se você quer saber , homens também não . Mas não é disso que eu quero falar - ainda . Eu quero falar sobre Deixa Ela Entrar .
Deixa Ela Entrar é , entre muitas outras coisas , um filme sutil . E não só por ser completamente implícito em relação ao abuso sexual - motivo pelo qual decidi ver o filme em primeiro lugar - mas também pela forma como uma história tão violentamente detalhada quanto a criada originalmente por Lindqvist é lapidada para o cinema . Afinal , não há nada de sutil ou delicado na trajetória de Oskar ( Kare Hedebrant ), um garoto solitário de 12 anos que sofre bullying e tem sede de violência , e da vampira Eli ( Lina Leandersson ), que se alimenta de sangue humano e cheira mal . Também não há nada de sutil nos planos em que Hakan ( Per Ragnar ), tutor de Eli , assassina friamente um habitante da cidade , na forma bagunçada em que a própria Eli dilacera a garganta de suas vítimas ou ainda na agressão sangrenta que as crianças infligem

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entre si . A violência é distante , mas incrivelmente direta e crua . Um ato desnudo de muita compaixão , mesmo que Eli pareça se arrepender dele .
A primeira vista Deixa Ela Entrar é do jeito que a cinematografia nórdica tende a ser : fria , sem pudor ou medo da violência que mostra . Mas é a relação entre Oskar e Eli que compensa e alivia a atmosfera tensa do filme , um relacionamento que é construído em ambientes e contextos completamente destrutivos e que , mesmo assim , sobrevive , perdura . Entre os assassinatos , o bullying e o desejo de sangue , Eli e Oskar se encontram e o ambiente parece mais leve - não só parece , como é . A trilha é mais suave , os diálogos são triviais e é como se o filme se desdobrasse em um outro gênero . Juntos eles formam um sopro de inocência em meio à violência de suas vidas e também a do filme . A sensibilidade , às vezes , vem do respiro . E , às vezes , vem de escolhas .
E eu digo isso porque sei como Deixa Ela Entrar poderia ter sido completamente diferente , mais violento , mais explícito , mais nauseante . Primeiramente pelo seu gênero e , depois , pela sua obra original , ambos intimamente ligados e que , quando juntos , diluem-se ao longo do filme . São escolhas , de construção de roteiro , de decupagem , de corte . Se Deixa Ela Entrar é classificado como terror , por que não apelar para o óbvio ? Por que não violentar mulheres