SOBRE TODOS OS FILMES QUE
A primeira crítica que li sobre o filme Deixa Ela Entrar( 2008) do diretor Tomas Alfredson fazia uma breve comparação ao livro do qual foi adaptado, escrito pelo também roteirista do filme John Ajvide Lindqvist, dizendo“ Na verdade, o filme é muito mais implícito no que se refere à história central. No livro fica claro que Eli é um homem e um pedófilo”. A partir daí eu havia decidido que não veria Deixa ela entrar. Em três anos de faculdade de cinema eu evitei o máximo de filmes que tivessem estupros e pedofilia independentemente do seu suposto grau de relevância artística. Eu evitei Irreversível( Gaspar Noé, 2002) e o O Último Tango em eu não vi
Por Hanna Esperança
Paris( Bernardo Bertolucci, 1972). Evitei Lars Von Trier e Polanski. Evitei até mesmo Game of Thrones. Eu fiz isso pela minha saúde mental, coisa que decidi em 2010 após ver a sequência de estupros da personagem Lisbeth Salander no filme também sueco The Girl With the Dragon Tattoo( Niels Arden Oplev, 2009). Sequência que me causou tanto mal estar que nunca consegui assistir por inteira, da mesma forma que também nunca tive coragem de rever as mesmas cenas com uma decupagem diferente no remake de Fincher. Algumas pessoas poderiam me falar que isso é algo bom, que se The Girl conseguiu causar esse tipo de reação em mim é porque o filme cumpriu seu papel artístico-social. Mas o soco no estômago que dizem ser tão necessário não me choca nem um pouco. Não me choca talvez, só talvez, porque na minha condição de mulher eu esteja cansada de ouvir sobre essa realidade e temer por isso. Eu não preciso de dados estatísticos e eu certamente não preciso de alguns minutos de estupro explícito em widescreen para que eu saiba o quão grotesca essa violência é. E se você quer saber, homens também não. Mas não é disso que eu quero falar- ainda. Eu quero falar sobre Deixa Ela Entrar.
Deixa Ela Entrar é, entre muitas outras coisas, um filme sutil. E não só por ser completamente implícito em relação ao abuso sexual- motivo pelo qual decidi ver o filme em primeiro lugar- mas também pela forma como uma história tão violentamente detalhada quanto a criada originalmente por Lindqvist é lapidada para o cinema. Afinal, não há nada de sutil ou delicado na trajetória de Oskar( Kare Hedebrant), um garoto solitário de 12 anos que sofre bullying e tem sede de violência, e da vampira Eli( Lina Leandersson), que se alimenta de sangue humano e cheira mal. Também não há nada de sutil nos planos em que Hakan( Per Ragnar), tutor de Eli, assassina friamente um habitante da cidade, na forma bagunçada em que a própria Eli dilacera a garganta de suas vítimas ou ainda na agressão sangrenta que as crianças infligem
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entre si. A violência é distante, mas incrivelmente direta e crua. Um ato desnudo de muita compaixão, mesmo que Eli pareça se arrepender dele.
A primeira vista Deixa Ela Entrar é do jeito que a cinematografia nórdica tende a ser: fria, sem pudor ou medo da violência que mostra. Mas é a relação entre Oskar e Eli que compensa e alivia a atmosfera tensa do filme, um relacionamento que é construído em ambientes e contextos completamente destrutivos e que, mesmo assim, sobrevive, perdura. Entre os assassinatos, o bullying e o desejo de sangue, Eli e Oskar se encontram e o ambiente parece mais leve- não só parece, como é. A trilha é mais suave, os diálogos são triviais e é como se o filme se desdobrasse em um outro gênero. Juntos eles formam um sopro de inocência em meio à violência de suas vidas e também a do filme. A sensibilidade, às vezes, vem do respiro. E, às vezes, vem de escolhas.
E eu digo isso porque sei como Deixa Ela Entrar poderia ter sido completamente diferente, mais violento, mais explícito, mais nauseante. Primeiramente pelo seu gênero e, depois, pela sua obra original, ambos intimamente ligados e que, quando juntos, diluem-se ao longo do filme. São escolhas, de construção de roteiro, de decupagem, de corte. Se Deixa Ela Entrar é classificado como terror, por que não apelar para o óbvio? Por que não violentar mulheres