Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Page 9

tirada por mãos inexperientes , é mostrar que essa pessoa foi de férias , nada mais . Penso num rosto demasiado bem pintado , um rosto demasiado real . O seu lugar não é ali , não na tela . Uma parede de palavras . Penso muitas vezes em Flaubert e na sua tentativa de descrever a medicina – o raio da medicina –, a medicina que nos aborrece na vida real e ali , naquela história de traição , adquire a inusitada capacidade de se tornar ainda mais feia . É incrível , de resto , como os procedimentos médicos são , por si só , estupidamente horríveis , escabrosos , sem nada para além da sua função mais imediata . Apetece-me agora dizer uma frase obscura : “ É nesses momentos que a parede de palavras perde a opacidade que ilumina ”. A opacidade que ilumina , sim . E o facto , não nos esqueçamos , o facto é o que dá cabo de quanto nos esforçamos por fazer compreender aos outros .

3 .
Chegar à cidade com um conjunto de ideias na cabeça . Um conjunto de ideias que se aplicam a essa realidade anterior : o extenso , o estático , o sedutor campo . Stendhal , uma das minhas paixões . Julien Sorel , o filho de um carpinteiro que , em O Vermelho e o Negro , embate nos obstáculos da vida na cidade para quem se relaciona com ela pela primeira vez . Misturar-se , como numa peça clássica , entre os habitantes da cidade .
As pessoas da cidade que se vestem , falam e se movimentam de certa maneira – há , de facto , uma forma muito própria de as pessoas se movimentarem na cidade . A estupidez de jogar com a simpatia onde ter a capacidade de ser cínico é a única coisa que pode fazer diferença . É a partir da cidade que escrevo . Eu próprio , há muitos anos , de malas feitas para um espaço no qual as pessoas vivem umas por cima das outras , partilham transportes umas com as outras , não param de se cruzar umas com as outras . O espaço no qual não consegues ter a ilusão de que a rua é tua , nunca lá estás sozinho , não as vezes suficientes . É em si próprio , naquilo que pensa acerca de si próprio , que Julien Sorel embate quando deixa Verrières em busca do amplo e incontornável espaço urbano . É em si próprio que embate . No seu desconhecimento daquilo que se encontra prestes a encontrar . Tornar-se capaz de circular entre essas duas realidades , o campo e a cidade . Sair vencedor do jogo de compreender esses dois ritmos tão diferentes , aqui está uma forma de ser um atleta competente nos dias de hoje .
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