Hugo Mezena
8
1 .
Uma ideia para um filme : um estranho a quem T ., uma figura pública , contou uma coisa que fez no seu passado – uma coisa inconfessável , algo que deveria ter guardado para si até ao fim –, esse estranho foi embora sem deixar rasto . T . vai , agora , percorrer um longo caminho em busca desse outro . É um homem alto , com uma pronúncia marcada . Um homem com a barba por fazer . Nada mais sabe acerca dele . Perder um segredo , sim . A ilusão de que contar um segredo a um estranho é menos perigoso do que deixá-lo nas mãos de alguém que conhecemos bem . Deixar que os copos bebidos num bar sirvam de desculpa para que isso possa acontecer . Os teus segredos . As pessoas que flutuam ternamente à tua volta à procura dos teus segredos . No filme , após uma procura solitária e difícil , T . acaba por descobrir o estranho que , nessa noite de dispersão e engano , ouvira a sua terrível confissão . Descobre-o numa terra distante , uma localidade demasiado inócua e insignificante , demasiado pequena para que a ideia de atribuir importância ao que se passou continue a ser possível . No seu registo contido e silencioso , T . gasta alguns dias a observar o homem com quem falou no bar e fica a saber que este tem dois filhos , gere um negócio de móveis em segunda mão , às nove da noite está já a dormir . Por fim , apresenta-se como um funcionário que anda a fazer um inquérito acerca do papel do Estado na garantia das liberdades individuais . É tudo demasiado fácil . O outro não o reconhece , não desconfia , não parte do princípio de que um inquérito é sempre uma forma de saber algo acerca de quem responde – tudo menos aquilo que é perguntado . T . percebe , então , que pode voltar para casa . Este é um homem demasiado inofensivo , demasiado desinteressante para que faça sentido temer pelo seu segredo : alguém que se deslocara a um destino longínquo e não tinha levado a máquina de barbear consigo . Há vários filmes com um enredo semelhante a este , disso não tenho a menor dúvida . Trata-se de uma história que nos vem à cabeça com facilidade . A razão não é difícil de descortinar .
2 .
Penso muitas vezes em Flaubert e na sua tentativa de descrever a medicina . Falo de Madame Bovary . Descrever um certo tipo de medicina , claro . A medicina do séc . XIX , com os seus instrumentos , os seus procedimentos , todo aquele conjunto de ideias sobre as necessidades do corpo e a maneira de lhes dar resposta . Penso , depois , em James Wood e na forma como este aponta para a parede de palavras que Flaubert levanta : uma parede que se ergue entre o texto e a realidade . Vejo uma pessoa que tem por trás um destino turístico , uma pessoa que foi de férias e a intenção da fotografia ,