Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Page 58

58 como soldados . A tal cintura está em todo o lado , mesmo se os campos de milho estão a ferver de abandono . Sei que tudo isto é provisório , que alguém os há-de cultivar , ou utilizar , ou proibir , ou olhar com cobiça . Mas somos da dimensão do agora , somos vivos , e é agora que os campos cobertos de erva a as fábricas em ruína me dão o castigo da infância – o ter vivido .

Vivíamos numa casa no meio de um grande quintal , construída quando eu nasci . Não havia água canalizada . Havia um balde de plástico vermelho e um jarro branco na casa de banho , e tínhamos de ir enchê-los ao tanque várias vezes ao dia . A água de beber vinha da fonte do Melo , à cabeça da Cila ou de quem desse água . O início era sempre o mesmo , um pano que se enrodilhava numa cobra redonda e bem feita e se punha à cabeça . Depois o cântaro lá ia , deitado , com o pescoço em reptações de avestruz para não cair . O caminho da fonte era íngreme , tinha congorças azuis pálidas na Páscoa e passava ao lado da quinta Melo – uma extensão vasta de campos que desciam suavemente até ao rio Cértima , um espaço onde não se podia ir . Espreitávamos os mistérios , mas nunca nada transparecia , a não ser os diospireiros que ficavam nus e se carregavam de oiro vermelhoalaranjado no inverno , e eram coisas tão belas que pareciam inventadas . A fonte tinha sempre um gralhar de mulheres à espera , todas com cântaros e bilhas de barro ou canecos de zinco . Ouvia-se o ruído do jorro de água a cair e a encher num silvo fininho até transbordar , o upa para pôr o cântaro à cabeça , e outra vez aquele hábil pescoço de borracha , que ondulava como sempre tinha ondulado desde os tempos da Xerazade .
Nas reuniões de família – os aniversários , o Natal , a Páscoa , a Santa Marinha - toda a gente contava sempre as mesmas histórias , e que bom era ouvir sempre as mesmas histórias . André Brun era abundantemente citado , sobretudo o parolo do Praxedes e os almadraques do leito da trescâmara , depois a história da cobra que fazia greló , a história do bêbado que caíu no rio e que perguntou às mulheres que lavavam : ” Ó raparigas , eu aleijeime ?”, e a história da ti Pança , contada pelo meu Pai : a Esperança era uma rapariga feia e mal enjorcada , uma latagona com uns pés enormes e umas mãos que pareciam pás de forno . Um dia , andava ela a cortar erva com um foicinho , passou o Chico com uma carrada de mato . O Chico , que a amava em segredo , não aguentou aquela visão sublime e declarou-se ali mesmo :” Menina Esperança , tomara ser boi ou baca para poder comer a erba que as suas mimosas mãos colhem ”. É por isso que para mim , esperança é sempre o meu Pai a chorar a rir , e , talvez , as mãos da ti Pança