Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Page 56

56 os laços curvos dos éles , o indomável éfe , que nunca fui capaz de desenhar com prazer . A circunvolução do quê-de-haste , o oblívio dos ós e o grito no abismo do pê grande . Tudo isso foi o domínio da mão . Depois , foi o tornar-me outra pessoa – que era capaz de ler e de escrever . Dois meses depois de ir para a escola , comecei a escrever cartas à minha Mãe . Ela recebia cartas das Tias , com as letras angulosas do início do século , para cima e para baixo , aranhas nos dois sentidos do papel , e lia-nos em voz alta as cartas da Tia Bertha . Achei que era um meio admirável de lamber , mastigar , cheirar e tocar o mundo , e decidi que também o iria fazer . Não havia muito papel e eu usava papel de cartucho , cinzento com riscas roxas , que vinha da loja do sr . Manuel Caixeiro . Fazia envelopes e desenhava num dos cantos um ser gordo e informe que imitava o cavalinho dos selos – um escudo para as cartas , cinco tostões para os postais . Ia à despensa procurar o papel que houvesse , mesmo os invólucros do tabaco de cachimbo do meu Pai , com um belo veleiro e cor azul e laranja . O cheiro doce do tabaco era irregular e aventureiro . Escrevia não sei o quê , a grande ausência de pensamento , claro , apenas tinha o barro do afeto . Mas era suficiente para a minha Mãe guardar as tais cartas . Para além do papel e da tinta irregular dos tinteiros de porcelana grossa em cada carteira , existia a lousa com caixilhos de madeira e os ponteiros de ardósia . Havia os finos e os grossos , um tostão e dois tostões , que precisavam de ser afiados . Os bons aparos custavam cinco tostões , moeda branca e convincente . O sr . Manuel Caixeiro ziguezagueava a caixinha para os aparos sairem devagar , e eu escolhia um . Depois aviava o resto das compras : virava-se e ia buscar o caixote de marmelada , que atirava para o balcão . Cortava um grosso quadrilátero com uma espátula de madeira - primeiro gravava uma linha e movia a mão em ângulo reto para um lado e para o outro da linha ; “ Está bem assim ?”. Punha na balança e embrulhava em papel vegetal . Uma marmelada vermelha , granulosa , grosseiramente industrial . Mágica e untuosa . Um paralelipípedo de felicidade . A seguir , um quarto de quilo de café – fazia um cone de papel pardo que enrolava depressa . Meio quilo de arroz – um cartucho de que fechava as orelhas . Gestos de esquilo , olhos rápidos , como se coordenasse mal a rapidez do seu tempo com a inércia da mercearia – os arcões de feijão , as peças de pano , as linhas de garrafões de vinho empalhados , as caixas de lata das bolachas . Ao lado tinha uma tasca de onde saía um murmúrio de vozes e copos grossos a bater no balcão . Havia fome , fome a sério . Muitas vezes encontrava as minhas colegas de escola , algumas até as orelhas tinham afiladas pela fome .