Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Page 55

viuvinha . E a triste viuvinha contava que é bem feito ela estar a chorar na roda porque não tem com quem casar . Não que isso fosse importante . A minha vida era uma coisa invisível como as histórias de fadas , com a mesma impossibilidade e a mesma fratura que me conduziam a um reino fantástico e vago . Nesta infância de que me lembro , as catástrofes estavam protegidas pela ausência de dor e não tinham peso nem realidade . A vida , tal como eu a sentia , era imensamente solar – e refiro-me exatamente à luz do sol a impregnar tudo de uma vitalidade mágica . E esta palavra , que rasteja constantemente antes dos dez anos , intromete-se em tudo . Nas lagartixas e nos pirilampos . Nas nuvens e no cheiro do café com leite . No passar dos dias como gigantescos balões que rasam a copa das árvores .

Fui para a escola com uma bata cor-de-rosa com uma golinha redonda . Vejo pelas fotografias que era uma garota sorridente , de feições harmoniosas e olhos a luzir . Senti emoção , isso lembro-me , mas não era medo . A escola era pertíssimo de casa , as minhas irmãs estavam lá comigo na mesma sala . Foi uma coisa parecida com solenidade , a entrada num mundo de regularidade , exigência e algumas coisas interessantes . Éramos quantas ? Estávamos ali todas , as quatro classes , loiras , morenas , descalças umas , sub-nutridas outras , com a luz a vir das janelas à nossa esquerda . Com sanitários que mal mereciam esse nome , apenas buracos mal-cheirosos sem água corrente . Sem aquecimento . E , no entanto , isso não era muito importante . O conhecimento , tal como o sinto agora , é opressivo . Não é por levantar cada vez mais questões ou remeter-nos aos limites que sobejamente conhecemos . É apenas porque não o conseguimos processar emocionalmente . Porque na escola não nos ensinaram a sentir – presumiram que já nascemos a saber sentir . Porque não nos disseram : a vossa balança de prazeres e desprazeres , de bom e de mau , é um fraco instrumento de medida . Não há mais nada para além da vossa bipolaridade , e é por isso que o universo não cabe no pensamento . E , por universo , refiro-me aos outros , os tremendos outros que estão aí , prontos a asfixiar-nos apenas por existirem . Ninguém nos encorajou a imaginar o interior dos outros . Não sabemos bem como perceber , e a fome de hierarquia e de poder estão enroscados em nós , na nossa bondade e na nossa maldade . Mais uma vez , ninguém nos ensinou a desprezar o fiel da balança com que pesamos tudo . A escola ensinou-me a ler . Começou por pintainhos amarelos de giz no fundo do quadro , e de repente saltou para as letras , a grande e a pequena em cadernos com linhas paralelas ,
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