Fluir nº 8 - Novembro 2021 | 页面 54

Século XX , anos cinquenta

Isabel Cristina Pires
54
Olho a terra onde nasci como se fosse o olho calmo da tempestade . O século XX era uma ficção que corria fora das fronteiras do país , vagamente assustador , vagamente industrial e elétrico , vagamente esplendoroso , mas sempre estrangeiro . Eu vivia num séc . XX de lavradores embrutecidos de álcool e de mulheres que punham latas de cravos à janela . O ano era pontuado pelo milho e pelo feijão , pelas vindimas , pela apanha da azeitona , pelo cortejo no domingo de Ramos e pela procissão da santa Marinha coberta de notas de vinte , cinquenta , cem escudos e com um manto de veludo verde bordado a ouro . O ano era uma roda lenta , previsível , teimosa e segura . Todos os dias as sirenes das fábricas de barro e da serração uivavam ao meiodia , e era um rio de mulheres a descer a ladeira das Poças com os tamancos a bater nas pedras e os cestos à cabeça para levar o almoço aos maridos . Todos os dias iam lavar ao rio , e ouviam-se as vozes guinchadas dos recados entre elas e os filhos . Todos os dias a escola abria com os garotos de cada lado da escada saudando a professora , bom dia minha senhora como está passou bem , sem vírgulas , num só hausto . Os anos cinquenta ali estavam , embrutecidos por campos de milho regados ao fim da tarde . Por escolas e repartições com o retrato de Salazar . Por famílias com fome na aldeia – sabiam-se quem eram , havia um sentimento de pena e de um imenso classismo , as coisas eram mesmo assim , uns superiores e ricos , outros inferiores , sujos e pobres . Pelas filas de operários mal vestidos nas fábricas de barro , nas serrações , no campo . A conduzir parelhas de bois , de enxada ao ombro e um saco de serapilheira para livrar da chuva . As mulheres com os cântaros à cabeça . Pela humildade , pela pequenez circular que nada sabia do mundo . Os anos cinquenta eram uma ilha que em breve se afundaria no mar .
Sinto que a escola primária foi o ponto focal de onde continua a sair toda a matéria que me incomoda e me vai preparando , não para a morte , mas para continuar até lá . Na escola , poderiam ter-me avisado da coragem que é necessária para tudo . Da importância dos homens e da viscosa e discreta menoridade das mulheres . Poderiam ter-me falado dos seres humanos como inimigos naturais de todos os seres humanos . Depois , sim , teriam lugar os desenhos de fábricas ao longo de rios , de poemas de bois e panelas de ferro , da clarinha que é boa dona de casa . A escola continua a emitir esse jorro de luz cónica e feliz , e depressa dividiu o tempo em salas a cheirar a pó de favas e ao recreio cá fora , onde uma roda de meninas com batas cor de rosa , descalças , ranhosas , magritas , quase velhas , cantava a triste