um gesto largo e apitar . Um dia , subitamente , D . Filomena levantou-se , veio ao centro e numa voz audível e pausada disse que o problema dela eram os pés . Fez-se um silêncio extraordinário e a reunião tomou um rumo diferente . Beatriz ofereceu-se para conversar com D . Filomena sobre os seus problemas de pés . Durante algum tempo , os pés foram o tema das conversas , mas depois , surgiram as mãos da mãe que em tempos tricotavam , o pai , pescador , há muito sepultado no mar e os irmãos , de quem nada sabia . Pedrinha a pedrinha foi-se abrindo um atalho naquela vida há muito esquecida . Uma vez D . Filomena pediu-lhe umas meias de lã grossa , como as que tivera em tempos . E Beatriz trouxe-as , bege , feitas à mão e com uma risca azul índigo , profundo e sereno . Enquanto afagava as meias , dos olhos de D . Filomena soltou-se uma lágrima cristalina , de menina .

Entretecer

As mãos raramente descansam , e , mesmo adormecidas constroem , afagam , prometem , repelem ou suplicam . O tempo desliza sob os dedos que entretecem a nova peça , inspirada em palavras soltas como distância , impaciência , cansaço , energia , ausência , esperança , tristeza , oferenda . Durante este tempo tricotaram uma camisola com duas mangas azuis da mesma cor , uma em liga e outra em meia , desligadas do corpo ; quem sabe possam vir a trocar de lugar uma com a outra . As mangas permanecem soltas no cesto de vime . Aquilo que se afigura incompleto e abandonado parece querer desvendar uma forma singular de abertura a um mundo de possíveis matrizes que rasguem as amarras que ordenam o lugar onde deve pertencer .

“ Nós , fiéis à necessidade do labor de quem nos escolheu , somos agora uma obra que cresce em sete azúis de liga e meia , urdida pelas agulhas e entremeados com tecidos de várias tonalidades e texturas , unidos pelo direito e pelo avesso : eu , índigo , tenho por companhia o marinho e o mediterrâneo ou o cobalto e o turquesa . Cada cor , imagino , deve simbolizar um desafio povoado pelas múltiplas combinações possíveis , assim como pela perplexidade que o enamoramento e o desconhecimento do mundo suscitam . Agora somos uma espécie de lar onde todos cabem e se podem abrigar . Estamos pendurados , feitos camisola / vestido , à vista de todos e gostamos de morar neste lugar ”.

( 1 ) Fala inspirada na escolha de um objecto significativo que representa e comunica como alguém se sente num determinado tempo e contexto . O protagonista fala pelo e como se fosse o objecto e este , fala sobre o autor que o elegeu . O novelo azul pertence e foi escolhido por uma pessoa chamada Júlia .

Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Page 51