Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Page 50

50 contrastam com o vermelho intenso , fixado no gesto de retoque dos lábios , a afirmar uma presença que rivaliza e , ao mesmo tempo destaca as nuances em movimento deste corpo exuberante . Laura gosta de pintar os lábios de vermelho quando se imagina num outro local , para lá das portas que a contêm neste quotidiano suspenso e incerto . Os cadernos , recordações de um tempo e de um lugar , são a promessa de escrever pequenos trechos que podem emergir e não quer perder . No entanto , a maioria jaz imaculada . De vez em quando , visita-os , pega num com uma intenção temática e inicia-o dando-lhe um título ; depois , num outro , maior e vulgar , derrama pensamentos provisórios , imperfeitos e inacabados que talvez um dia venham a ser passados a letra bonita para o lugar que os mereça . Certo dia , no meio de arrumações que periodicamente faz , encontrou , dentro de um livro antigo sobre plantas , com o título parcialmente apagado , um envelope que albergava umas folhas em papel de carta , com linhas desbotadas pelo tempo e dobradas ao meio . No interior , entre frases ilegíveis podia ler-se , escrito numa caligrafia inclinada e bonita : “ Escrevo-lhe estas tristes linhas relatando horas de pasmo que sobre estas areias tenho passado desde a sua partida ”. Não conseguindo descobrir a quem pertencera ou eram dirigidas , mas percebendo que desvendara sem querer a intimidade de algum antepassado próximo , sentiu uma grande cumplicidade e simultânemente , o dever de ser depositária desse amor , porventura secreto e cujo destino poderá ter dado frutos , resolvendo assim guardar para si esta descoberta .

A risca azul dos soquetes beges . Laura faz terapia pela arte num lar para pessoas idosas . Um dia , Beatriz contou-lhe a história de D . Filomena , uma senhora pequenina , de idade indefinida , que vivera muitos anos numa instituição para pessoas com doenças mentais . Diziam que sofria de mutismo , pois esteve cerca de dez anos em que ninguém lhe escutou uma só palavra . Todas as semanas se realizavam reuniões gerais , animados por um psicólogo , com a presença e participação de todas as residentes e técnicos . Nelas , eram introduzidos os mais variados temas de conversa relativos à vida colectiva e / ou a vidas anteriores , individuais , familiares , reais ou imaginárias . Habitualmente as coisas começavam em silêncio e com todas sossegadas nas suas cadeiras , dispostas em torno de um centro amplo e livre . Pouco a pouco , as mulheres iam-se levantando e começavam a falar , sozinhas , para ou com outras , quase sempre em simultâneo e subindo progressivamente de tom , até o responsável da reunião fazer com os braços