Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Page 49

Ao Luis , o marido , não consegue dar-lhe um corpo outro e apresenta-o inteiro e real . Da sua boca soltam-se frases que Laura não consegue conter e que proclamam , escritas em vinhetas : ” Conheço os mais ínfimos poros do teu ser ; quer durmas , suspires , grites ou andes de chinelos , reconheço o teu balanceio dançante e sei como tudo isso me é ..” . A si própria desenha -se no mar , vertical e feita da mesma matéria da água em que se encontra contida . Depois faz um barquinho onde coloca os seus amores pequeninos que , ora mergulham no mar materno ora se recolhem à bateira , agarrados às cordas que o pai lhes lança . Concluídos os desenhos , procede à sua montagem , colando-os em cartolina nas respectivas posições . Fotografa o conjunto e faz um quadro que oferecerá aos pais no dia do aniversário do seu casamento . A mãe chorou , o que não era habitual , mas não se percebeu se estava comovida ou destroçada . O pai , emudeceu . Nesse momento compreendeu como fora acertada a decisão de não lhe ter colocado uma mão a tapar-lhe a boca e , pela primeira vez em muito tempo , sentiu-se ela : não teve vontade de gritar , nem tão pouco necessidade de obedecer aos seus ditames , entre silêncios tumultuosos .

Os nenúfares Desafiada pelas mais de duas centenas de pinturas de nenúfares do jardim de Giverny , tantas delas representadas sob o manto turvo das cataratas de Monet , e pela arte de Cézanne , com o seu amor pelas formas geométricas realizadas através de pinceladas de cor , onde a utilização dos azúis , entre vibrantes amarelos e laranjas , confere às suas pinturas da natureza uma atmosfera de profundidade , decidiu realizar uma experiência de desconstrução com os nenúfares que fotografou no lago do parque Terra Nostra , na ilha de S . Miguel . Os seus nenúfares , aos quais retirou o esplendor cromático , parecem deslizar num contínuo entre a água e uma película de textura muito leve , conferindo ao conjunto uma beleza noturna , quase desprovida de luz . O olhar é atraído pela forma que parece desenhar relações tonais , estranha harmonia que solicita uma atenção subtil , para que as distinções possam emergir . No luto da cor e da forma o transfundo da memória ameaça trair a visão exposta .
Revelações Há dias foi à gaveta onde guarda os cadernos que se encontram nas lojas dos museus e que costuma comprar quando vai a alguma exposição temporária . Desta vez escolheu um František Kupka , “ Le Rouge aux Lèvres ” cuja exposição visitou em Paris , no Grand Palais , em 2018 . A predominância de vários tons de azul e as pinceladas largas que evidenciam os traços do rosto da mulher , o fundo e a blusa ,
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