Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Page 48

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Fotografar . Como encontrar a voz que tantas vezes lhe fica estrangulada na garganta ? Sendo uma entusiasta de fotografia , descobriu , através dela , formas especiais de se relacionar com o mundo . Quando contempla a natureza na sua transbordante sensualidade , após um longo e atento olhar , seleciona e capta com a sua velha Rolleiflex lugares , pedaços de vida por onde vagueia e depois revisita , ou , nas ocasiões em que , em sucessivos instantâneos , fotografa as expressões risonhas falsamente genuínas nos encontros de família ou com amigos . Durante esse processo pressente uma força mágica que parece dominar o espaço e o tempo e lhe oferece uma estimulante sensação de controlo e poder . Se fotografa pessoas em poses deliberadas às quais sugere posições , gestos , posturas e expressões , descobre , atrás da objectiva , um mundo por desvendar , agora registado em momentos cuidadosamente preparados para a posteridade . Laura fotografou cada um dos elementos da sua família , todos vestidos de um branco tão puro que lhes ilumina as faces pálidas . Sérios e levemente inclinados sobre o lado direito , parecem-se com os retratos que antigamente se tiravam no fotógrafo para assinalar ocasiões solenes . Solitários nos seus olhares de ausência , desapego , altivez ou inocência , estes rostos , separados , transmitem estranheza e solidão . Observados com atenção , os retratados parecem aguardar um novo destino , como as flores mortas que ela pinta e adorna , testemunho de uma outra condição paralela à natureza viva . Depois de olhar atentamente as expressões , recorta cuidadosamente cada rosto e desenha um corpo para cada um . Ao pai , um tronco grosso , um pouco atarracado e de médio porte , do qual saem vários braços demasiado delgados . À mãe , uma estátua branca de mulher estilhaçada em pontos vitais , insinuando a dúvida sobre se será uma escultura quebrada ou uma forma incompleta . De um dos braços , abandonado longe do tronco , pode ver-se o desenho nítido de veias sinuosas por onde se imagina ter circulado sangue aguado . A irmã do meio , uma figura excessivamente magra na qual se evidencia o abdómen dilatado com vasos de filigrana desenhados debaixo da pele , quase transparente , é-nos apresentada virada de pernas para o ar equilibrada pelos cotovelos . No interior vislumbra-se o feto que cresce dentro de si , quase um bebé que parece aguardar o momento do grito da sua libertação . António , o irmão , surge vestido de azul marinho e voltado para uma parede caiada , embelezada pela sombra de um balde de alumínio hortências que se imaginam azúis e roxas . O contraste claro / escuro e a homogeneidade da roupagem não revelam sinais identitários , mas o cenário transmite uma acolhedora sensação de luz primaveril .