Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Página 47

como no tempo em que desesperava , na tentativa de agradar à mãe e adivinhar-lhe as intenções – pobre mãe , sempre tão ensimesmada . Agora , mais desprendidos , olhos e mãos procuram harmonizar caminhos que ligam a imaginação à ação . João e Camila desenham rugas na testa , nos olhos e nas asas do nariz da mãe , pois os filhos sabem como sente um coração de mãe .

Todos os dias são viagens . Quando vai à farmácia e compra gotas para humidificar os olhos do marido , falhos de lágrimas , Laura recorda-se de o ouvir dizer , em surdina : “ tenho de me proteger da secura da vida e da poeira do mundo ”. Enquanto aguarda a sua vez , regressa às sestas de infância e de como se entretinha a olhar o teto do quarto , tentando nele descobrir figuras . Em criança não gostava de dormir a sesta , sentia-se aborrecida , presa e sozinha , enquanto os irmãos dormiam sossegados . Rosa costumava verificar se tudo estava bem e ordenava-lhe que fechasse os olhos senão chamava os ciganos para a levar . Um dia , durante a vigilância habitual , cerrou-os com tanta força que ela se fartou de rir e permitiu até que se levantasse antes da hora . Desde que se tornou adulta , passou a gostar de sestas no verão , de adormecer sobre a leitura , embalada pela brisa e pelo som do mar .
O Avesso . Em dias de divagação entretece pensamentos onde se demora por tempos esquecidos . Não sendo capaz de discernir ideias , imagens , emoções e pensamentos no que desabrocha perante si como uma espécie de oferenda aberta do mundo , pedra flor ou animal , água ou vento , sol ou pele , reconhece-lhes contudo o esboço de uma trama , um princípio , um direito e um avesso . Laura aprecia com minúcia os avessos , quase sempre menos brilhantes , com cores geralmente desbotadas e que revelam a forma como são rematados os fios , os nós , as imperfeições , os esconderijos . Existem avessos muito bonitos e perfeitos , difíceis de distinguir dos direitos , mas sempre diferentes . Exigem um olhar pormenorizado que permite pôr a descoberto o pequeno , o quase invisível , um gesto , um toque subtil , um timbre difícil de classificar , um olhar que se obriga a regressar àquele lugar . Por vezes o avesso está abandonado , esquecido , aquietado , invisível . Outras , tem um inesperado interesse , bem maior do que o direito , mesmo que na sua aparente imperfeição . Então , em dias de solidão , comparecem segredos , incompletudes , mistérios , pois não é raro que o visível seja apenas o invólucro que recobre o encanto do reverso , tão secreto que não pode revelar-se .
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