Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Page 46

Entretecer

Isabel Prado e Castro
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“ Sou um novelo de lã azul . Fui encontrado num mercado , a um sábado de Outubro de 2015 . Desde então , já fui gola de camisola , quase umas meias do Luís , o esboço de um casaco para a Camila e um gorro do João . Por alguma razão ela tece e destece as centenas de pontos tricotados com os meus fios . Talvez tenha algo de Penélope ou então se sinta impelida a um ritual de imitação da natureza , como a pulsação de um corpo cujo andamento , variável , se perpetua numa palpitação vital . Ou , porventura , temendo o destino , receie acabar a obra . Agora sou novamente uma gola de um modelo quase renascentista , escolhido para ser executado nesta fase de isolamento . Tenho em minha companhia outros novelos que comigo formam um conjunto de sobras de vários azuis , pois nenhum de nós é suficiente para chegar ao fim . Não sei quanto tempo irá durar esta Odisseia , mas espero vir a ser parte de uma peça única e bela que possa agasalhar nas noites frias . Gostava de não regressar , como novelo azul , ao cesto de vime ”( 1 ).
Laura . Em certos dias , ao acordar , Laura massaja o ventre enquanto respira o ar quente que emana da axila . Depois , levanta -se e estira o corpo como se estivesse a afinar as cordas de um instrumento , antes de começar a tocá-lo . O ouvido , muito sensível ao ritmo , ajusta-se ao acto de bocejar e ao aumento dos batimentos cardíacos .
Após uma inspiração profunda , liberta sons de diferentes alturas e intensidades e compraz-se a abrir a boca , ao mesmo tempo que sente o diafragma a subir e o abdómen a expandir-se em sintonia com a caixa torácica . Então , entreabre-se a mais um ciclo de respiração musical e desperta para o novo dia . Hoje recorda o sorriso raro da sua mãe e a parte do corpo que vislumbrava quando em criança se encontrava no seu colo : o peito altaneiro , a cava do braço , o perfil saliente do maxilar . Enquanto vagueia , sem pressas nem vagares entre os afazeres diários , o espelho devolve-lhe a imagem da mãe , através do olhar do João , aninhado no seu regaço . Os olhos de Laura são de um verde acastanhado que mudam de acordo com os caprichos da luz . Podem apresentar-se doces , duros , irónicos , espantados , alegres , zangados ou melancólicos , sedutores ou infantis , abertos , semicerrados ou fechados . Por vezes , em determinadas situações , temem erguer-se e evitam sistematicamente determinadas pessoas . Através deles descobre o mundo , imenso e surpreendente e com eles tenta tocar o que consegue alcançar . As suas mãos conjugam-se num vai - vem de gestos repetidos em automatismos entranhados , como a forma de escovar o cabelo , igual à que a avó Amélia fazia antes de se deitar ou no jeito de limpar e arrumar a loiça , com receio de a quebrar ,