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Disse-me que o filho mais velho já tinha em sua casa uma « Siri », e o filho mais novo apressou-se a dizer que , quando morar sozinho , vai querer ter uma . Tenho um amigo que me ofereceu um belíssimo livro de fotografia da autoria dele . Neste caso , não é preciso dizer « vamos chamar Humberto ao meu amigo ». O nome dele é mesmo esse : Humberto Brito . O Humberto fotografa paisagens urbanas inóspitas , solitárias ou devastadas . Num texto breve e luminoso , no final do livro , ele escreve a dado passo : « Por exemplo , já ninguém sabe muito bem quem escavacou a paisagem . É claro que alguém o fez , mas quando o fotógrafo chega os danos parecem ter sido feitos por mão invisível . E ocorreu-me quão parecido isto é com as pessoas .» Dou por mim constantemente a embelezar o passado , sobretudo aquele que não vivi . Somente aquele que não vivi , aliás . Depois leio livros e falo com pessoas mais velhas do que eu e percebo que isso não faz sentido , que o mundo sempre foi um lugar de dor indizível e que a dor nunca aproxima as pessoas , afasta-as sempre . John Banville escreveu que « o presente é o lugar onde vivemos , o passado é o lugar onde sonhamos ». Mas vivo aqui e agora , é aqui e agora que preciso de milagres , de esperança , de sonhos . Às vezes , parece-me que somos todos como o Wolfgang : levamos agora uma existência diminuída , de segunda categoria . Já não sabemos muito bem quem escavacou as nossas vidas . É claro que alguém o fez , mas , quando chegamos à nossa vida de todos os dias , como um fotógrafo ao chegar a uma paisagem , os danos parecem ter sido feitos por mão invisível . É como se alguém tivesse assistido , sem intervir , por delicadeza , escrúpulo ou pudor , à transição entre o que podia ter sido e o que agora temos , esta infelicidade organizada e solitária . Tudo aconteceu devagar , em câmara lenta , houve uma dor de cabeça , houve o arrastar da perna , mas , depois de consumado , parece que foi num abrir e fechar de olhos . E parece irreversível . Mas podia ter sido de outra maneira e , além do mais , não é irreversível . Recuso-me a aceitar o irreversível . Numa palestra há uns meses , na Gulbenkian , Lilian Thuram , campeão do mundo de futebol , disse : « Estarmos sós equivale à loucura . Sozinho , um homem enlouquece . Vivemos numa sociedade em que as pessoas caminham para a solidão . Logo , para a loucura .» Colecciono todos os sinais que me dão alento . Rodeio-me deles como quem recolhe lembranças , à maneira de um vizinho meu , que tem o carro repleto de despojos trazidos da praia , uma estrelado-mar ressequida , conchas , ouriços-do-mar , exosqueletos alinhados no tablier , ao sol . Colecciono momentos a que assisto ou episódios que me contam , e uns e outros têm para mim o mesmo valor . A Mariana a deixar que o telefonema
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