Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Page 34

34 antes de as torturarem e matarem . Como se a única maneira , no meio da solidão em que nos debatemos , de obrigarmos o outro a ouvir atentamente as nossas teses , o nosso programa de acção , o nosso plano quinquenal fosse raptá-lo , amarrá-lo a uma cadeira e trancá-lo numa cave . O paralelismo que o meu cérebro estabeleceu não é , afinal , assim tão espúrio . Tanto o assassino do filme como o Tiago diziam o mesmo : que estamos dispostos a correr todos os riscos para mantermos entre nós e o outro uma distância sanitária , feita de uma delicadeza asséptica . E foi por isto que eu nada disse ao Tiago , para não comparar as palavras dele com as do gélido Skarsgård . Preferi dizer-lhe que , no lugar dele , eu teria feito exactamente o mesmo , o que não deixa de ser verdade . Teria deixado o Wolgang partir para o aeroporto , a arrastar a perna . — Tudo isto que te estou a dizer — explicou o Tiago — é uma racionalização minha a posteriori . Se não fosse , se estes pensamentos me tivessem passado pela cabeça naquele momento , se eu tivesse articulado estas ideias de modo coerente durante o telefonema do Wolgang à meia-noite ou ao vê-lo a arrastar a perna , então eu seria um psicopata . E acho que não sou . Há uns tempos , eu e a minha mulher fomos a casa de um casal de conhecidos nossos . Vivem num apartamento de uma opulência obscena , cinematográfica , no centro de Lisboa .

O anfitrião , mal entrámos , pôs-se a falar em inglês com um aparelhómetro , uma espécie de coluna sonora pousada numa mesinha , que ele tratou por « Siri ». Vamos chamar Júlio a este homem . Em tom aveludado , o Júlio ordenou à « Siri » que acendesse as luzes da sala e que pusesse a tocar a música . A máquina , antes de obedecer , respondeu numa voz feminina de ciber-escrava . Aquilo incomodou-me tanto que tive de sair da sala . Fugi para a cozinha , mas o Júlio seguiu-me . Queria muito falar da « Siri ». Pôs-se a enumerar tudo o que ela fazia . Disse-me que só não usava uma das funcionalidades do aparelho : trancar a porta da rua por comando de voz . Tinha medo de que um pirata informático entrasse à socapa no sistema e lhes assaltasse a casa . Quando saímos , eu disse à minha mulher que não voltava lá mais . Tanto na voz da « Siri » como na voz com que o Júlio a interpelou havia qualquer coisa de sinistro , a horrível afabilidade com que tentamos disfarçar uma distância intransponível . Ou até , pior ainda , o tom melífluo que imagino nas primeiras frases dos fulanos que ligavam para o 144 , a masturbarem-se . Ou ainda a voz pedante e ligeiramente aborrecida do assassino em série a que Skarsgård dá corpo , a prolongar o monólogo antes da violência feroz . E o que mais me incomodou foi perceber que a « Siri » constituiu , para o Júlio , o concretizar de uma pequena utopia e que , doravante , ele se considerará diminuído se não possuir em casa aquela presença .