Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Page 33

populares modernos : o atirador solitário , o sniper . — Eu podia ter-lhe dito : « Vamos ao hospital . Se calhar , isso é grave .» — continuou o Tiago . — Se ele tentasse desvalorizar , como tentou , eu podia ter insistido , podia tê-lo forçado . Mas isso implicava cruzar uma linha invisível , transpor uma barreira . Significava , no fundo , dar cabo da felicidade daquele homem . Aquele homem tinha uma vida e , depois do AVC , uma nova vida começou para ele . E eu não quis ser a pessoa que deu início à nova vida dele . Não quis ser , nos pensamentos dele , para sempre , o homem que o fez renascer para uma existência diminuída , de segunda categoria , um sucedâneo da vida anterior . Não quis ser o porteiro entre aqueles dois mundos . A Mariana contou-me que havia uma louca que ligava para a linha 144 . Dizia : « Sou muito boa . Canto muito bem . Vou cantar .» E punha-se a cantar . E a verdade , disse-me ela , é que a mulher cantava bem , tinha uma bela voz . E havia um homem chamado Armindo que ligava todos os dias dos Açores , duas vezes , primeiro de manhã e depois à noite . Todos os operadores o conheciam , ele já falara com todos . De manhã cumprimentava-os e , à noite , despedia-se . Tinha uma voz acriançada , notava-se que devia sofrer de um ligeiro défice cognitivo . Os operadores perguntavam-lhe : « Então , o que vai fazer hoje ?» E , ao final do dia : « Então , como é que lhe correu o dia ?» E ele contava os seus afazeres , as suas preocupações , sempre educado , bastante pueril . A Mariana contou-me que , por várias vezes , quando lhe calhou a ela falar com o Senhor Armindo , a conversa se prolongou além dos doze minutos regulamentares , levando-a a ser penalizada no prémio de performance , ao final do mês . Mas ela não era capaz de desligar sem mais nem menos quando a contagem decrescente no monitor se aproximava do zero . Todos haviam percebido que aquelas conversas telefónicas eram a única interacção afável que aquele homem tinha com outras pessoas . Tenho pensado muito no porquê de o meu cérebro , à minha revelia , ter feito aquela ligação directa entre a história do Tiago e o filme de Fincher . Acabei por encontrar o traço de união entre as duas narrativas , o laço subconsciente a prendê-las uma à outra . Acho que foi a imensa solidão que pressenti no substrato de ambas . O assassino em série , o pirata informático à cata de fortuna e o atirador de elite são a tradução ficcional , compulsiva , da absoluta solidão a que nos deixámos remeter neste início do século XXI . Nenhum deles tem motivações políticas . Não nos interessam , aliás , as narrativas políticas , as lutas ideológicas , as utopias colectivas , perversas ou salvíficas . O mal é individual , a salvação é individual . Não queremos ouvir discursos políticos , não estamos disponíveis para nos deixarmos mobilizar . Não por acaso , os assassinos em série , como o de Fincher , são sempre verbosos , submetem as vítimas a longos discursos

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