Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Page 32

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No preciso momento em que esta cena me ocorreu , dei-me conta de que havia qualquer coisa de espúrio no paralelismo que o meu cérebro estabelecera instintivamente . O Tiago estava a dizer-me que não ajudara o Wolfgang por excesso de delicadeza , escrúpulo ou pudor . Na cena de que me lembrei , o assassino diz que as pessoas se tornam vítimas por excesso de delicadeza , escrúpulo ou pudor . Quando trabalhou na linha 144 , a Mariana estava a acabar a faculdade . A empresa preferia recrutar estudantes na área das ciências sociais , para não ter de investir muito na formação . Antes de começarem a trabalhar , os operadores tiveram dois dias de formação inicial . Dois dias . Havia um tipo que telefonava todos os dias de uma cabine telefónica da Almirante Reis , a masturbar-se . Sabiam que ele ligava da Almirante Reis , porque ele fazia questão de dizer . Quando , por obra do acaso , calhava ser um operador do sexo masculino a atender a chamada , ele desligava logo . Quando era uma mulher a atender , ele dava início ao ritual . Mal percebiam do que se tratava , elas desligavam , mas nem sempre era imediatamente evidente . Assim que a operadora desligava , ele ligava de novo . Ligava repetidamente , nos vários momentos do acto , falando com operadoras sucessivas , até atingir o clímax . Um outro tipo ligava também a masturbar-se , com ruídos de trânsito em fundo . Percebia-se que era taxista .
— Ainda por cima — disse-me o Tiago —, o Wolfgang lançou-me um grito de alerta velado , que foi aquele telefonema nocturno , a desoras . Foi como se tentasse delegar em mim a responsabilidade pelo que lhe estava a suceder , o que é perfeitamente compreensível , porque ele devia sentir-se assustado . E eu esquivei-me a essa responsabilidade . Houve um outro motivo para eu não falar ao Tiago da incursão cinematográfica do meu cérebro durante a conversa com ele . É que o filme de Fincher me irritou . Impressionou-me visualmente , instalou-se no meu subconsciente , mas irritou-me , por conter dois elementos que colonizam o nosso imaginário actual , que encharcam inúmeras narrativas contemporâneas e que dizem muito sobre o nosso mundo : por um lado , a figura do assassino em série ; por outro lado , o golpe milionário , por meios informáticos , que permite a alguém enriquecer num abrir e fechar de olhos , à custa dos maus da fita , sem deixar rasto . No final do filme , uma rapariga , a intrigante ( recuso-me a escrever palavras como « icónica ») Lisbeth Salander , interpretada por Rooney Mara , faz isso mesmo : dedilhando furiosamente o teclado do portátil , transfere uma fortuna colossal para a sua própria conta bancária , apoderando-se dos incontáveis milhões de um qualquer oligarca exsoviético . Só falta no filme de Fincher o terceiro fetiche dos filmes , das séries e dos romances