Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Page 25

que nem dava para segurar em condições , também se mostrava desconfiada . Eu disse-lhe como quem não quer a coisa « Grave tudo , grave que é para provarmos ». Ela nem me respondeu , acenou só com a cabeça , tentou esconder uma lágrima e depois lá murmurou « Não diga nada ao seu marido , que eu também não digo ao meu ». Nisto o meu marido chamou-me de dentro da tenda porque me queria ao pé dele . Nem imagina o nojo que me meteu saber que as tripinhas não eram o mal que saía , era só a desilusão à mostra . Quis bater naqueles filipinos de merda e já nem rezei ao Sagrado Coração . O meu marido deu-me a mão e disse « É desta , é desta !». Eu sei que tinha combinado com a mulher da câmara não contar nada , o segredo ficar entre nós . Mas eu ao almoço olhava para as pessoas , que estavam a comer do bom e do melhor com a ideia de se curarem , e parecia-me a última refeição . Todos iludidos . À noitinha o meu marido voltou a perguntar-me « Mas afinal o que é que tu tens ? Não estás feliz por mim ? É que se era para isto eu tinha vindo sozinho ». Aí não aguentei . Só consegui contar-lhe sentada na cama , mas contei tudo sem me conter , a chorar . A ele faltou-lhe o fôlego , sentou-se também na cama mas do outro lado porque não tinha coragem de me olhar nos olhos . Depois levantouse , pôs-se muito grande à minha frente e disse « Tu devias é ter ficado em casa , estás-me a estragar a saúde ! Tu queres é que eu não me cure , queres é este doente para tratar . Estás a mentir e a enganarme , eu bem vi que eles iam buscar o mal bem dentro de mim . Tu está mas é calada ». Eu não me calei , repeti , ele levantou-me a mão mas parou-a no ar , deu meia-volta e saiu porta fora . No dia seguinte levei-o ao tratamento , ele já desconfiado e eu já desiludida de todo . Continuámos os curamentos comigo calada . Só no fim da primeira semana é que ele me acordou a meio da noite para dizer « Agora também já vi o que tu viste ». Juntámo-nos à mulher da câmara e a um grupo de portugueses que entretanto tinha perdido as ilusões . Íamos falando como quem não fala . Mas acontecia que Manila estava nesse tempo em estado de sítio , havia gente armada à volta do hotel . Os curas eram uma espécie de máfia , não havia dúvida , e nós estávamos para ali desamparados . Não tínhamos a quem pedir socorro . A mulher da câmara insistia que o melhor era fecharmos a boca até ao voo de volta . Regressados a Portugal , falávamos com as autoridades , denunciávamos na RTP , fazíamos trinta por uma linha . Até lá decidimos , e a palavra passou entre os portugueses , que íamos continuar no hotel . Quer dizer , íamos continuar os tratamentos . À noite o meu marido já chorava , dizia « O que eu faço é sofrer e dar a sofrer », e eu acho que foi daí que tirou o título do diário .

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