Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Page 23
O meu marido nem falava . Ficámos deitados no quarto , cansados da viagem , a ganhar forças para os tratamentos . Vinte e dois dias de cura é muito dia . Respirávamos a custo , era difícil por causa da ansiedade . Ele antes de adormecer disse « É desta , é desta » e até se abraçou a mim , a pequena , a Rosinha , e eu disse-lhe « Deus queira » e também o abracei . A primeira manhã foi o regalo . Chegámos ao salão dos tratamentos onde estavam centenas de pessoas , também uns oitenta portugueses . Eu nem sei explicar o que senti . Na parede havia um Sagrado Coração e eu olhei para ele , meti as mãos onde me lembrei de as pôr , que foi ao peito porque me doía de tantos nervos e expectativas , e rezei para que ele se curasse . Desfiei o Pai Nosso e a Ave Maria e meti pelo meio as minhas intenções . O meu marido não rezou mas eu bem via que ele estava emocionado . Havia quem dissesse « Graças a Deus » em português e muitas outras rezas noutras línguas . Sei porque eram coisas repetidas . Olhávamos para as caras uns dos outros e sorríamos . Os doentes chegavam a pé mas depois os filipinos da organização apontavam para as cadeiras de rodas à entrada do salão . E lá iam os doentes nas cadeirinhas empurrados por quem os acompanhava até às macas que ficavam em tendinhas improvisadas . Faziam os tratamentos e saíam das macas mais leves , prontos a andarem pelo próprio pé , e eu mal podia esperar pela nossa vez . Os filipinos são um povo muito feio , escuro , pequeno , e dava-me aversão tocarem no meu marido com as mãos . Mas lá chegou a vez dele . Deitaram-no despido na maca , só com uma toalhinha por cima . E depois foi a coisa mais maravilhosa que eu já vi . Os curas impuseram-lhe as mãos , passaram aquelas mãos escuras pelo corpo , tanto que o meu marido até se arrepiou . Depois levaram as mãos à bacia , limparam-nas na água-santa e então é que começou assim . Foram primeiro aos braços , e eu a pensar que não era ali , mas eles lá sabiam o melhor caminho . Tiraram dos braços uma tira de carne meio podre . Eu quando vi aquilo não queria acreditar mas acreditava . Era o mal a sair . A sair aos rodos , aquela coisa húmida que o andava a matar há tanto tempo . O filipino principal , o que tinha a bata mais suja de tirar os males , pôs-lhe as mãos sobre a barriga e foi descendo para trás , até aos rins . Não imagina a minha felicidade . O filipino tirou-lhe dos rins uma tripinha longa . E eu quase saltava , foi difícil não berrar « É desta , é desta !», mas contiveme porque havia mais gente e era uma vergonha . O meu marido limitou-se a levantar um pouco a cabeça para olhar para a tripinha , quase desmaiou da emoção de ver o sangue , mas antes ainda me sorriu . Pouco depois limparam-no , puseram-lhe uma bata e fizeram sinais de que por hoje tinha acabado .
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