Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Page 22

Lua-de-mel

Afonso Reis Cabral
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É que o meu marido foi um doente e escrevia um diário . Na capa do primeiro volume pôs Diário do homem que sofreu e fez sofrer . Ao início não era a questão de sofrer . Porque nós mais o menos todos sofríamos . Viemos para esta casa porque a minha avó estava velha e tinha perdido as duas vistas . Como não tinha as vistas , viemos para cá ajudá-la e também para não pagarmos a renda . Eu nasci naquele quarto , a minha avó morreu neste quarto e os meus filhos cresceram neste quarto e na sala também . O meu marido acabou por morrer no hospital depois de vinte anos de hemodiálise . Escreveu seis volumes do diário , e nos primeiros quatro fomos felizes . Havia o mal dos rins mas nós aguentávamos . Depois do 25 é que ele ficou consumido , ficava a um canto da sala , naquela poltrona ali , mal olhava pela janela , não dava um afago aos filhos , dizia sempre coisas muito desagradáveis , e eu perguntava-lhe « Onde é que te dói ?». Só que não lhe doía da doença , doía-lhe antes da política . Consumia-se , estava sempre a reivindicar , era um revolucionário e como não podia sair de casa fazia a revolução aqui na sala .
E eu dizia-lhe « Podes ter as tuas razões mas olha se depois do 25 alguém se dispunha a fazer o que fizeram por ti na firma ». Ninguém . Por isso quando há uns anos peguei no diário , já ele tinha morrido , decidi que os dois últimos volumes eram difíceis de mais para ler . O que ele dizia de mim .
E queimei-os no forno e deitei as cinzas nos Prazeres . Os outros quatro são antes da revolução , consigo lê-los bem , ele ainda dizia que eu era a linda , a pequena , a Rosinha . Isso são outras histórias . É que nós tínhamos ouvido falar de um novo tratamento . Aparecia num vídeo e encheu-nos de esperança , até porque o doutor das Caldas garantia a pés juntos que o tratamento resultava . Vinha dizer a quem o ouvisse que o vídeo era bom . Os colegas da firma começaram a andar de porta em porta pelo Chiado . Hoje ninguém fazia disto . Disseram prò que era , falaram do meu marido , dele doente , e às tantas já havia dinheiro para a viagem . Eu nunca tinha saído do cantinho e ele também não , e além disso ia com as dores . Estávamos cheios de medo e de dólares . Escondemos as notas no forro das malas e da roupa porque não podíamos sair do país com tanto dinheiro . O receio de sermos apanhados pela polícia . Mas tínhamos de nos ver curados porque eu bem percebia que ele ia já consumido dos rins , ainda antes do tempo em que a política o consumia . Apanhámos três aviões e estávamos em Manila , num hotel de cinco estrelas . Eu espantada com aquilo , a pensar que curarmo-nos assim dava gosto . Era a primeira vez que via tantos dourados e madeiras trabalhadas e cheiros a comidas novas . Mas o que ia mais ao alto era a esperança .