Nunca foste boa . Podias ser boa .
O corpo dele , por fim , na colcha . E os sapatos a não quererem sair , as calças presas , a força de o levantar um pouco mais , ele a gritar
Deixa-me estar , porra .
Ela , paciente , silenciosa , a trabalhar com as mãos , os botões da camisa , o fecho do casaco de malha . A braguilha resistente . A barriga dele para cima , ela aos pés da cama de ferro a puxar as calças , as cuecas arrastadas também , o sexo frouxo . Morto . Sem qualquer comoção . As coisas no corpo dele . Aquilo que o torna humano , veias , articulações , pêlos , pele , ruídos . Por vezes sente a comida a subir à boca , mas nunca chega a vomitar .
Se pudesse queria despi-lo de tudo o resto . Mas não é sequer capaz de pensar nisso . Eliminar-lhe a pequenez , a falta de mundo , a bebida , a vida . Podia até matá-lo , como viu numa série policial . A prisão não seria muito diferente . Podia isso tudo . Os pensamentos cruzavam-se com rapidez porque , naquela sexta-feira , imaginou que tudo era mesmo possível de acontecer . Ele já dormia no sofá há muito . Na televisão apareceu uma senhora pequenina , uma senhora com um xaile pelos ombros , que lhe falou expressamente . A senhora , uma escritora , estava ali a falar só para ela . Tem a certeza disso . Disparou frases simples e concisas , olhando-a nos olhos , só a ela , directamente . Houve um silêncio e , depois , na imensidão da noite , dentro daquela luz branca azulada da televisão , a escritora virou-se para ela e acrescentou ainda
As mulheres pequenas inspiram um sentimento de vaga hostilidade , como se pertencessem a uma raça diferente .
17