Estás a olhar para onde ? Olha que eu hoje ...
Virou o rosto para o pedaço de carne assada na tábua de madeira , carne pronta para fatiar . Viu a faca , o filme todo e a sua falta de coragem , as pernas bambas e o tal odor . O corpo traidor , a exalar medo por todos os poros . Cortou as fatias de carne muito fininhas e foi debicando , como um pequeno pássaro , os restos , as farripas de carne que se desfaziam na faca contra a tábua de madeira . A porta do frigorífico abriu-se novamente . Sentiu o corpo dele a passar na soleira da porta , um vento mau . Ouviu então o arrastar da cadeira de madeira e o peso dele à mesa , à espera . Saiu da cozinha com o prato pronto e colocou-o à frente do homem , sem o olhar , os olhos fixos na mesa , na toalha com flores que comprou , há quanto tempo ?, no hipermercado . Regressou à cozinha e continuou a fazer uma refeição de pássaro . Olhou para a janela . Viu-o , sem ver , a pegar no comando da televisão , o volume a agredir os ouvidos , as notícias .
Fogo em prédio de idosos mata três pessoas ; criança desaparece depois de ser agredida pelo padrasto ; mais de trezentas pessoas serão despedidas até ao final do mês numa fábrica no norte ; greve dos enfermeiros ...
Não precisava de ver nada , ali de costas , no palácio da cozinha , lá estava ela , simplesmente a imaginar a maldade do mundo impressa nos tijolos com gordura e pingas de sopa por limpar . Ele protestava alto sobre os comentários do analista de serviço ao telejornal de sexta-feira à noite
Este gajo é parvo ... está-se mesmo a ver ...
Outra vez , o sentimento de vergonha que a invadiu era maior do que o medo .
Sentiu os ombros descaírem , a dor persistente nas costas . Mastigou com calma a carne e pegou na faca . Brincou com ela por instantes . Sem pensar muito . Os outros sons desapareceram , a televisão , ele a comer , os talheres no prato . Contou até mil .
Era tarde . Não lhe apetecia carregá-lo para a cama . O corpo dele pesado contra o dela . Não lhe apetecia ouvi-lo na sua voz empastada a dizer asneiras , a chamar-lhe nomes . A agressividade concentrava-se toda nos olhos castanhos . Eram os gestos de guerra , a guerra dos dois . Gestos quase matemáticos . Quando começou a guerra ? Já nem se lembra . Um dia , a mão no frigorífico , a garrafa emborcada ou ,
15