Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Page 15

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Há outras coisas a ponderar . Não é preciso entender o papel dela na cozinha a empestar o planeta com o seu cheiro azedo , enquanto ouve e percebe que a chegada do marido está iminente . Não é preciso porque não serve de nada . Um homem fuma e bebe , não chora nem pede . Paga as contas e verifica o dinheiro . Fecha a porta da casa de banho . Sempre . Compra roupa uma vez por ano . Usa o mesmo tipo de sapatos . Arranja as coisas em casa . Ela procura não pensar em cenários alternativos . Nada de sonhos , nada de fantasias .
Larga essas revistas , que porra ! Quem te manda ler esses livros ? Só gastas dinheiro em merdas .
Ela sonha com as extensões de cabelo da apresentadora do concurso da televisão ; sente as dores da outra que foi trocada pelo marido seis meses depois de um casamento majestoso numa quinta qualquer ; comove-se com o nascimento da filha da top-model ; tenta imitar a actriz da telenovela da noite ; gostaria de vestir , uma vez que fosse , uma peça de lingerie de seda muito fina . Tudo isto acontece na sua cabeça antes de fazer o jantar , as revistas escondidas do olhar dele .
A mesa está posta e ele arrasta-se com o copo na mão até ao sofá gasto . Ela atreve-se
Um dia vou mudar de sofá .
Nem penses , este já tem o buraco do meu cu .
São coisas assim . Agressões que a limitam , a aprisionam , a desfiguram , a destroem com enorme eficácia . Ele torna-a um conjunto de coisas sem nome . Ela sabe tudo isto e sabe ainda mais quando vê as horas a passar , horas torturadas por telenovelas que se repetem , os mesmos rostos , as mesmas vozes . O roncar de álcool no sofá .
A cozinha está arrumada . Não lhe resta mais nada , a luz da televisão a engolir-lhe a tristeza e ela a perder a noção de si , pronta para ser uma princesa , alguém , outro que ninguém conhece . Uma mulher , por fim . A mãe dizia-lhe que as mulheres são para se desconfiar , têm hormonas diferentes a cada vinte e um dias e , por isso - apenas por uma inevitabilidade biológica - não são fiáveis .
Somos o que somos . E temos de o aguentar .
Ela senta-se na sanita muitas vezes a ver as coisas do corpo , o sangue castanho e vermelho a boiar na água sem um destino que não seja o esgoto . Está vazia . O corpo dela está e sempre esteve vazio .
Nessa sexta-feira fazia calor . Ele chegou com o humor do cansaço e de quem já vinha bebido . Não disse nada . Foi direito ao frigorífico ,