Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Page 14

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Diz alto Gaspar , Melchior e Baltazar , valei-me desta semente para ter e para dar .
Junta as bagas mordidas numa nota de cinco euros e dobra a nota até ficar pequenina , o sumo da romã nos seus dedos de pele seca . Coloca a nota na carteira , na zona das moedas , bem arrumadinha num canto . E assim , ela sabe , tem essa certeza : o dinheiro não faltará . A nota fica ali num quase esquecimento até ao próximo dia seis de Janeiro . As bagas apodrecem , claro , mas isso não interessa . São protectoras . Conhece outras simpatias . Para não casar : mandar uma estátua de Santo António ao rio ; para ter filhos ... Não , essa não .
Julga-se protegida por não terem tido filhos . Seria pior . Tenta acreditar nisso . Muitas vezes acredita . Há outras em que se comove , as lágrimas abissais , e deixa que tudo desabe sobre ela , porque na rua um bebé sorri num carrinho sofisticado , todo terreno , conduzido por uma mãe , quem sabe ?, estoirada , mas feliz . Feliz por ter esse consolo . Ter filhos é um consolo . Até um certo momento , pelo menos . Até não nos fugirem da pele com vergonha de serem já eles e não apenas o prolongamento de quem os pariu . Ela defende-se sem habilidade quando lhe perguntam porque é que não tiveram rebentos ( tem ódio à palavra ), porque é que não cumpriu o seu papel , a coisa grandiosa da maternidade que confere sentido de vida . Mesmo à vida que não terá qualquer espécie de lógica . Como definir um sentido para a vida ? As pessoas encaram-na com uma certa pena . Tem essa consciência . Como se não fosse mulher o suficiente , como se dependesse dela . Nessas ocasiões , limita-se à exibição de um sorriso e olha para longe . Fica à espera que passe , sabendo de antemão que falta uma resposta e que do seu silêncio nascerá apenas desconforto , constrangimento e , por fim , outra vez , pena .
A piedade é um sentimento menor , tem-se dos loucos , dos que andam perdidos e falam sozinhos
Já o dizia a mãe . Sábia mãe . Que Deus a guarde . Guardará ? Será que lhe perdoou o ter-se perdido em certezas sem concretizar nada que fosse digno de nota ? A mãe e as regras definidas para tudo , regras que dão ( darão ?) estabilidade , certeza , educação e cultura . O marido é diferente . Não julga nada porque a vida não lhe ensinou isso . Ensinou-lhe as coisas básicas da sobrevivência : o trabalho é para trabalhar . Um homem não se deixa . É melhor não fazer um rol de coisas . Se não as nomear , as falhas desaparecem . Nada de listas de queixas . A própria palavra – queixa – isolou-se do vocabulário , está silenciosa e quieta , sem estatuto ou vida .