Fluir nº 8 - Novembro 2021 | Page 13
os cozinhados , o lume sempre a ferver , cenouras , batatas , feijão verde , manchas de azeite , sal e noz moscada . Não faz nada sem uma pitada de noz moscada . Aprendeu com a mãe . É um ritual que lhe permite prestar homenagem diária à mãe . Uma mulher pequena , persistente e rija . É o melhor adjectivo que encontra : rija . O suor da mãe não tinha cheiro . Ou ela não tinha medo . Todas estas coisas correm-lhe , velozes , na mente atormentada , são segundos que definem o início da noite . Pensamentos atropelando-se descontrolados na cabeça dela como riscos ao acaso num papel qualquer , rabiscos que não formam uma ideia concreta . Tem uma tontura . Uma coisa ligeira . Há pensamentos que não consegue terminar . Parece-lhe , por momentos , que tudo se reduz a um conjunto de manchas pesadas que alastram pela casa , propagando-se a aflição no peito , o bater do coração descompassado , deslocado , a meio do pescoço , prestes a deixar o corpo . O medo dela arrasta-se pelo soalho . É um rio dentro da casa . Se o coração não estivesse preso , embrulhado nas cordas vocais e na traqueia , talvez conseguisse gritar . Um grito por ela , de terror por aguentar , de aviso , de guerra . Mas está assim . Interdita . As mãos na água , as pulsações a contabilizar o medo e o medo a dominar tudo . Ela sabe coisas : como o facto da traqueia ter dez centímetros ou que a aliança se coloca no dedo anelar da mão esquerda , porque em tempos se acreditou que havia um músculo fino que prendia o dedo ao coração . Ela sabe atar os tomates ao Diabo para encontrar coisas perdidas . Só precisa de um lenço de pano quadrado ; ata-lhe as quatro pontas com força e convicção e diz alto : “ Atei os tomates ao Diabo e só os desato quando achar as chaves , os papéis da segurança social , botão de esmalte verde garrafa ...” Pega no lenço amarrado e coloca-o debaixo da perna de um móvel pesado . Para que possa doer e essa dor possa motivar o Diabo a procurar o que desapareceu . Ela sabe que isto funciona . A sua mãe fazia-o sem cerimónias . A sua avó , a sua bisavó também . Perdeu-se a origem deste ritual . Pouco importa agora . Só funciona com objectos , coisas inanimadas . Esta premissa é peremptória . Infligir dor ao Diabo não é apropriado para encontrar outras coisas ; amor , paz , alegria , dinheiro , coragem . Há outra simpatia que conserva . Ela que se entende como historiadora das mulheres da família . Faz-se a seis de Janeiro , dia dos Reis . É preciso apenas uma romã madura . Senta-se na cozinha , em silêncio , num prolongamento de estar sozinha a tecer um mistério . Vê a faca percorrer a casca como uma fita infinita e gosta do som repetitivo , fita infinita , fita infinita , fita infinita . Separa a casca das bagas rosa da romã . Por fim , escolhe três bagas gordas e luzidias e morde cada uma bem no centro .
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