34
o mito da morte de um filho. Para Dalí era
impossível que a grandeza da pintura estivesse
apenas naquilo que os olhos conseguiam ver. Na
correspondência existente de Millet, Dalí afirma ter
encontrado a prova de que a cesta de batatas
cobria o que anteriormente estivera entre os
camponeses: um pequeno caixão com o corpo do
filho. Millet terá sido convencido a alterar a obra
através do argumento de que na capital francesa os
gostos começavam a mudar e que temas
demasiado melodramáticos não convinham ao
novo gosto parisiense.�
Embora nos anos 30 a radiografia a obras de arte
ainda não estivesse amplamente difundida, Dalí
esperou até 1963 para que o Louvre fizesse
finalmente uma radiografia ao “Angelus”: na
radiografia, no lugar da cesta de batatas, era
possível ver “uma massa escura de forma
geométrica facilmente assemelhável a um
paralelepípedo”. Até hoje não houve outra
explicação se não a de Dalí para o que estaria
debaixo da pintura.
“Lembro-me perfeitamente que o Angelus me tinha
impressionado extraordinariamente em criança (…) É
ao “Angelus” de Millet que associo todas as
____________________
� Esta afirmação relativa à correspondência de Millet nunca é
aprofundada por Dali no livro e o leitor fica sempre no limbo daquilo
que é verdade ou ficção. No entanto a hipótese colocada por Dalí não
foi nunca descartada.
recordações pré-crepusculares e crepusculares da
minha infância, considerando estas como as mais
delirantes, ou, poéticas. No momento desta transição
luminosa o canto dos insectos ganhava para mim
uma grande importância sentimental.”�
Quando este ano li sobre a hipótese de sob a
pintura, escondido como se de um segredo se se
tratasse, estar um enterro, percebi que aquilo que eu
escondia, a necessidade de invisibilidade, havia
encontrado um espelho no “Angelus” quando eu
tinha 17 anos. Nesses dias, todos os dias eu
acordava com o rádio a tocar; todos os dias tomava o
pequeno almoço com o meu pai e com o meu irmão;
todos os dias a minha mãe levantava-se com
dificuldade para me desejar um bom dia; todos os
dias eu apanhava o autocarro ou boleia com o pai da
Gabriela; todos os dias eram uma invenção de uma
realidade; todos os dias eu vestia camadas de roupa,
collants nos braços, vestidos por cima de calças, t-
shirts por cima de camisolas; todos os dias eu
escondia-me por trás de todos os dias; e todos os
dias eu queria muito acreditar que os dias iam
sempre existir. Mas às vezes, quando ficava sozinha
na parte de trás da escola, aquela parte que é onde
os que querem ser invisíveis se juntam longe de
olhares suspeitos para fumar charros e onde os
pseudo gangsters se juntam com as suas pseudo
crews, também eu ouvia o canto dos insectos.
____________________
�“O Mito Trágico do Angelus de Millet” de Salvador Dalí, P.65, &etc
edições, 1998