Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 34

34 o mito da morte de um filho. Para Dalí era impossível que a grandeza da pintura estivesse apenas naquilo que os olhos conseguiam ver. Na correspondência existente de Millet, Dalí afirma ter encontrado a prova de que a cesta de batatas cobria o que anteriormente estivera entre os camponeses: um pequeno caixão com o corpo do filho. Millet terá sido convencido a alterar a obra através do argumento de que na capital francesa os gostos começavam a mudar e que temas demasiado melodramáticos não convinham ao novo gosto parisiense.� Embora nos anos 30 a radiografia a obras de arte ainda não estivesse amplamente difundida, Dalí esperou até 1963 para que o Louvre fizesse finalmente uma radiografia ao “Angelus”: na radiografia, no lugar da cesta de batatas, era possível ver “uma massa escura de forma geométrica facilmente assemelhável a um paralelepípedo”. Até hoje não houve outra explicação se não a de Dalí para o que estaria debaixo da pintura. “Lembro-me perfeitamente que o Angelus me tinha impressionado extraordinariamente em criança (…) É ao “Angelus” de Millet que associo todas as ____________________ � Esta afirmação relativa à correspondência de Millet nunca é aprofundada por Dali no livro e o leitor fica sempre no limbo daquilo que é verdade ou ficção. No entanto a hipótese colocada por Dalí não foi nunca descartada. recordações pré-crepusculares e crepusculares da minha infância, considerando estas como as mais delirantes, ou, poéticas. No momento desta transição luminosa o canto dos insectos ganhava para mim uma grande importância sentimental.”� Quando este ano li sobre a hipótese de sob a pintura, escondido como se de um segredo se se tratasse, estar um enterro, percebi que aquilo que eu escondia, a necessidade de invisibilidade, havia encontrado um espelho no “Angelus” quando eu tinha 17 anos. Nesses dias, todos os dias eu acordava com o rádio a tocar; todos os dias tomava o pequeno almoço com o meu pai e com o meu irmão; todos os dias a minha mãe levantava-se com dificuldade para me desejar um bom dia; todos os dias eu apanhava o autocarro ou boleia com o pai da Gabriela; todos os dias eram uma invenção de uma realidade; todos os dias eu vestia camadas de roupa, collants nos braços, vestidos por cima de calças, t- shirts por cima de camisolas; todos os dias eu escondia-me por trás de todos os dias; e todos os dias eu queria muito acreditar que os dias iam sempre existir. Mas às vezes, quando ficava sozinha na parte de trás da escola, aquela parte que é onde os que querem ser invisíveis se juntam longe de olhares suspeitos para fumar charros e onde os pseudo gangsters se juntam com as suas pseudo crews, também eu ouvia o canto dos insectos. ____________________ �“O Mito Trágico do Angelus de Millet” de Salvador Dalí, P.65, &etc edições, 1998