Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 35

“Angelus” Jean-François Millet, 1858, Musée d’Orsay, Paris E tudo o que era invisível tomava a dimensão tremenda do final de dia. Na parte de trás da escola, o enorme descampado onde outrora morara a Pedreira dos Húngaros, deixava-me espaço para toda a angústia do final das coisas. O descampado que rodeava a escola tornava-se nos campos de final de dia de Barbizon e entre mim e os camponeses não havia qualquer tipo de diferença: o sol punha-se e ambos tínhamos de pôr debaixo da terra, ou por baixo de uma pintura, o nosso coração. aflitos, se inundarem. E dai-me a força de nunca ter medo de tocar a morte enquanto ouço o canto dos insectos. Hoje em dia eu gostava de ter tido uma espécie de oração para poder dizer enquanto o céu baixava e o sol era engolido pelo horizonte. E porque na ficção tudo pode acontecer, a oração era dita enquanto um megafone divino espalhava o “Va, pensiero, sull'ali dorate” do Nabucco de Verdi sobre o crepúsculo numa grande celebração da vida: Santa Luzia, Dai-me olhos capazes de ver para lá do mundo dos vivos. Dai-me olhos cheios que sejam como radiografias às obras do mundo e que eu seja capaz de ver debaixo delas a sua fragilidade. Dai-me o poder de ser frágil como as pinturas que se deixam rasgar com a convicção de que aquilo apenas as tornará mais fortes (que piada teríamos todos nós se não tivéssemos uma ou outra cicatriz?). Dai-me a certeza de que a luz precisa da sombra e que a sombra precisa de ter uma casa para a sua existência. Olhai pelos meus olhos quando eles, 35