“Angelus”
Jean-François Millet, 1858,
Musée d’Orsay, Paris
E tudo o que era invisível tomava a dimensão
tremenda do final de dia. Na parte de trás da
escola, o enorme descampado onde outrora morara
a Pedreira dos Húngaros, deixava-me espaço para
toda a angústia do final das coisas. O descampado
que rodeava a escola tornava-se nos campos de
final de dia de Barbizon e entre mim e os
camponeses não havia qualquer tipo de diferença:
o sol punha-se e ambos tínhamos de pôr debaixo
da terra, ou por baixo de uma pintura, o nosso
coração.
aflitos, se inundarem. E dai-me a força de nunca ter
medo de tocar a morte enquanto ouço o canto dos
insectos.
Hoje em dia eu gostava de ter tido uma espécie de
oração para poder dizer enquanto o céu baixava e o
sol era engolido pelo horizonte. E porque na ficção
tudo pode acontecer, a oração era dita enquanto
um megafone divino espalhava o “Va, pensiero,
sull'ali dorate” do Nabucco de Verdi sobre o
crepúsculo numa grande celebração da vida:
Santa Luzia, Dai-me olhos capazes de ver para lá do
mundo dos vivos. Dai-me olhos cheios que sejam
como radiografias às obras do mundo e que eu seja
capaz de ver debaixo delas a sua fragilidade. Dai-me
o poder de ser frágil como as pinturas que se deixam
rasgar com a convicção de que aquilo apenas as
tornará mais fortes (que piada teríamos todos nós se
não tivéssemos uma ou outra cicatriz?). Dai-me a
certeza de que a luz precisa da sombra e que a
sombra precisa de ter uma casa para a sua
existência. Olhai pelos meus olhos quando eles,
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