Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 33

“O Mito Trágico do Angelus de Millet” era para Dali a forma de demonstrar como a associação de interpretações e de análise de fenómenos delirantes poderiam levar a locais, informações e a conhecimento, de outra forma, inacessíveis, e ainda a novas significações, formas e, quem sabe, ao próprio inconsciente do “Angelus". Para sistematizar o estudo da obra de Millet, Dalí estabelece três níveis no seu ensaio: descritivo, interpretativo e de síntese e interpretação profunda da obra. No primeiro, Dalí trata de fenómenos delirantes, fantasias de carácter obsessivo e “visões” do Angelus. No segundo nível, procura demonstrar que existe algo na pintura que não se revela pela simples contemplação, mas apenas através de uma análise aprofundada e da associação dos fenómenos descritos no capítulo precedente. O terceiro capitulo é a conclusão, o grande final. Dalí fala da forma como o “Angelus" sempre o impressionara desde criança. Mais tarde, percebeu que a pintura não tinha esta relação de ____________________ Paranóia: delírio de associação interpretativa comportando uma estrutura sistemática – Actividade paranóico-crítica: método espontâneo de conhecimento irracional baseado na associação interpretativa-crítica dos fenómenos delirantes. A presença de elementos activos e sistematizados próprios da paranóia garante o carácter evolutivo e produtivo da actividade paranóico-crítica. (...) A actividade paranóicocrítica j. n.o considera os fenómenos e imagens surrealistas isoladamente, mas pelo contrário, num conjunto coerente de rela..es sistemáticas e significativas. (pp. 16-17) O Mito Trágico de Salvador Dalí exclusividade com ele: a forma como o “Angelus” afectava tanta gente, fazia da obra uma espécie de celebridade, um fenómeno social, não existindo na época pintura que fosse mais reproduzida. Numa das passagens do livro, Dalí relata que o escultor Alberto Giacometti quando passava por uma aldeia das altas montanhas suíças, “teve ocasião de ver um vendedor cujo burro ia carregado de cromos reproduzindo uma grande quantidade de imagens e quadros célebres. Os camponeses que havia visitado, com uma unanimidade que não deixava de o surpreender, tinham-se reunido (sem excepção) para lhe comprar a reprodução do Angelus de Millet; (…) esses camponeses desconheciam completamente, até então, a existência da dita imagem bem como das restantes imagens do lote”.� A forma como o “Angelus" era capaz de chegar a tanta gente e de estar presente nas visões e nas projecções mais singulares convenceram Dalí que a obra se tratava de mais do que aquilo que aparentava ser. Debaixo daquilo que o “Angelus” mostrava, escondia-se uma verdade que, mesmo invisível, emocionava aqueles que o viam. A sua atmosfera carregada de mistério, o carácter solene da verticalidade das duas personagens e uma angústia suspensa eram facilmente relacionáveis com a morte. Dalí expõe metodicamente o mito ancestral que crê estar contido no “Angelus": ____________________ � “O Mito Trágico do Angelus de Millet” de Salvador Dalí, P.60, &etc edições, 1998 33