Máquina de escrever
Sérgio Nazar David
O Som
Sérgio Nazar David
Vivi numa estação sem chuva e sem estio . Os vendavais mais puros sabiam-me no corpo a distantes acontecimentos :
eram noites de gigantes que a um menino não convinham . Eu era impuro mesmo quando , meio bêbado , meio santo , guardava
o pouco que tinha numa noz secreta e úmida . Ó minha máquina de escrever branquinha , ó meu amor mais infame , quanto de teu sal
são lágrimas , são mar , são a seiva ainda a me embalar ! Nada me faz mais feliz que o tique-taque dos teus braços dentro
dos flocos do travesseiro ditando-me o futuro . Meu pai viu-me debulhar o alfabeto nas molas do meu cérebro infantil .
Tudo que fez na vida resumir-se-ia nisto : dar-me a máquina Remington portátil e contrafeito reconciliar-se comigo .
Quando um som fica no ar ( onde já não estamos ) ele existe . O som sozinho não é o mesmo de
quando em sua mudez o vazio ergue muros , vácuos , hiatos , intermitências , a que chamamos
silêncio . O som sozinho na caixa – por exemplo – é o grito do esquecimento . O som sozinho
no corpo é o remoer da vida querendo . O som sozinho do mar é nunca poder chegar .
Existe o som sem dono . Existe o som sem casa . Existe o som sem norte , sem mãos que o toquem .
Existe o som sem ouvido . É como soa em nós tudo que ouvimos ontem .
[ Tercetos queimados , 7Letras , 2014 ] [ Tercetos queimados , 7Letras , 2014 ] 31