Fluir nº 11 - Abril 2023 | Page 27

ela consegue remeter os problemas para a escala das nossas existências : evitar os conceitos colocados num patamar demasiado alto , no céu inteligível das Ideias , para inscrevê-las nas experiências vividas por cada um de nós . Este cenário conceptual ' fala ' ao leitor e permite desencadear um questionamento verdadeiro porque ele é ' compreendido ' no sentido etimológico deste termo : o leitor apropriou-se dele . Ademais , o humor que acompanha , frequentemente , as páginas da banda desenhada facilita esta apropriação . Ele desdramatiza e contribui para descomplexar face a um discurso considerado , muitas vezes , difícil ou desencorajador . Contrariamente ao comic puro , que faz rir , mas que não faz pensar verdadeiramente , o humor favorece a emergência do pensamento através das situações deslocadas que põem em causa as convenções estabelecidas e as falsas evidências . Era o que Sócrates fazia já no seu tempo ; existe , inegavelmente , uma dimensão socrática no uso filosófico da banda desenhada .
Fluir - Como foi estabelecido o diálogo entre o autor e o ilustrador durante o processo , a concepção das obras ? Quais foram os principais desafios ?
Quando uma obra é escrita por um autor e um ilustrador , há permanentemente um ir-e-vir entre os dois ; estes intercâmbios levam a questões , a reformulações de problemas e à implementação de soluções textuais e gráficas indispensáveis à clareza da obra . Assemelha-se a um intercâmbio socrático , mas , aqui , é o ilustrador que brinca ao maiêutico , ao interrogar o autor : ' por que é que escreves isto ? Em que sentido queres dizê-lo ? O que é que isto significa , ao certo ?...'. A dupla competência que a escrita requer da banda desenhada encontra-se invertida : o ilustrador tem de se tornar ' expert em filosofia ' ou , em todo caso , com o seu bom-senso e o seu julgamento , tem de lançar um olhar crítico sobre a pertinência e a eficácia dos textos ( tive a sorte de trabalhar com uma formidável ilustradora , Emilie Boudet , que o faz muito bem ); o autor , quanto a ele , é levado a tornar-se um ' expert na ilustração ' e a verificar se a ilustração põe , de facto , em perspectiva a ideia desenvolvida . É este duplo esforço e esta ' partilha da autorialidade ', para retomar a fórmula de Hélène Raux , que são aqui interessantes : ao visar facilitar a compreensão da obra e ao colocá-lo à mão de semear do não-especialista , eles contribuem ao mesmo tempo para uma espécie de dessacralização do discurso . Por fim , os editores também têm um papel importante neste trabalho , cada um com a sua abordagem específica : como permanecer pedagógico ? Como tocar o jovem .
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