de novo para a vida activa . E como bom estudante de filosofia , pronto a transformar cada aperto moral num exercício de investigação teórica , pusme vigilante : queria perceber como é que a preguiça reinava sobre o povo incauto .
Na esplanada da FCSH , comecei por reparar que as pessoas não lhe atribuíam aquela carga pesada que vem associada a uma soberba , por exemplo , ou mesmo a uma trivial inveja . Para outros vícios , cenhos franzidos e condenações à morte ; para este , risos auto-complacentes e pancadinhas nas costas . “ De certeza que ela se aproveita disto ”, pensava eu , enquanto gargalhadas exalando álcool e mediocridade cresciam como ondas da Nazaré em meu redor . Ao olhar para dentro , dei-me também conta de que , além de bloquear a realização de certas actividades , a preguiça torna mais difusa toda a realidade em que o preguiçoso se situa . Fá-la perder definição e sentido de urgência ; cobre-a de um manto de névoa , de uma vagueza de sono matinal . Dessacraliza o presente , digamos assim .
Outras ideias encavalitaram-se na minha cabeça . Mas a descoberta que mais me iluminou veio de uma conversa com o professor de Metafísica II . Entre hesitações e risinhos nervosos , deixei no ar a possibilidade de fazer o trabalho final de curso sobre a preguiça . Não me recordo da resposta exacta do professor . Lembro-me apenas que , bem disposto , com a magnanimidade de quem acha divertidos os jovens de hoje em dia e se digna soltar uma pérola da sua sabedoria , me fez ver que o génio da preguiça consiste em baixar a exigência dos próprios ideais com que avaliamos o nosso comportamento , de tal maneira que ela acaba por se tornar invisível para as suas vítimas . “ Sim , é isso ... como é que não percebi antes ?” Não se tratava só de não fazermos a cama ou não nos inscrevermos como voluntários na UNICEF , mas de , através de hábitos laxistas , a bitola moral ser enfraquecida , enfraquecida e cada vez mais enfraquecida , a ponto de já nem termos olhos para ver quão entranhadamente imprestáveis somos .
Dei por mim nos dias seguintes a traçar enormes listas mentais com as acções de que a preguiça me havia apartado , não apenas aquelas que eu estava farto de conhecer , mas as outras , as mortas antes de nascerem , as depostas desde sempre no cemitério dos ideais por assumir . Expandi o exercício às pessoas da minha família , da minha faculdade , de Lisboa , da Península Ibérica ... Parei , cansado por antecipação , e sem capacidade para abarcar no espírito tantos horrores de incúria existencial . Ao longo de alguns meses , acompanhando o desenrolar frívolo duma existência burguesa , ouvi ainda dentro de mim SÓ SOU FELIZ POR PREGUIÇA — mas com intensidade decrescente , em fade out , até que a atenção
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