Gritos de Tinta
Simão Lucas Pires
20
Não sendo grande apreciador de street art , sempre tive interesse pelas mensagens expostas nas paredes da cidade . O que leva alguém a escrever assim para o vasto e desconhecido auditório dos seus concidadãos ? Muitas vezes , exibicionismo bacoco . Há , porém , grafitis que parecem autênticos gritos de alma , clamores de humanidade a que os possessos tiveram a gentileza de tirar o som .
Hoje em dia eficientes serviços municipais apagam boa parte destes desabafos públicos antes de alguém ter tempo de lamentar mais um “ acto de vandalismo ”; há uns anos não era assim . Andar por Lisboa era descobrir-se cercado por milhares de parangonas compostas de tinta e desassossego , que nos surpreendiam nos passeios de domingo ou nos acompanhavam nos trajectos diários , feitos os bizarros refrães do nosso quotidiano .
O meu primeiro embate com a dificuldade de interpretar , por exemplo , não se deve a nenhum exame sobre o Padre António Vieira — deve-se ao rabisco que ocupava a fachada do Hospital Pulido Valente . Oraculava assim : UMAS SENTEM A EXCITAÇÃO DO TÉDIO , OUTRAS NÃO ( assim mesmo , sem ponto final , o que prolongava o eco enigmático da frase ). Era ao passar de autocarro , vindo da escola , que o muro amarelado do hospital me falava nesses termos . Eu despertava então dos sonhos da adolescência , sacudido pela dúvida ; como se tivesse sido a própria Esfinge a dirigir-me a palavra , coçava e coçava a cabeça , tentando encontrar o sentido escondido atrás daquelas letras tão grandes e tão incompreensíveis . Ainda hoje me pergunto se terei percebido bem .
Seja como for , o grafiti lisboeta que mais me marcou foi outro . Era uma noite de Primavera . Nas Laranjeiras . Acabado de emergir da boca do metro , enquanto procurava a morada da festa para que fora convidado , esbarro na confissão pichada em letras pretas no muro da frente : SÓ SOU FELIZ POR PREGUIÇA . Não foi a dificuldade de interpretar , desta vez . Foi um raio de lucidez , foi um flash de auto-compreensão que me atacou de chofre , antes que pudesse abrigar-me na trincheira do telemóvel ou fugir nas asas de uma distracção qualquer . Naquele muro pouco memorável , a preguiça era enfim representada com toda a sua autoridade real . E o anónimo rabiscador que ali tinha aberto o coração revelara-me , sem o saber , a mim também . Passei a festa como um Grito de Munch a tentar não perturbar demasiado as conveniências .
Os dias seguintes passei-os à frente da televisão , a assistir ao campeonato europeu de andebol — prostrado não só pela preguiça do costume , mas ainda mais pela consciência de ser o servo inútil e preguiçoso de senhor nenhum . Chegada a segundafeira , convenções de poder titânico arrastaram-me