Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
A Ambulância Amarela
Julieta Monginho
8
Tenho um carro na mesa de cabeceira. Um carro
especial, uma ambulância. Uma ambulância amarela. O
carro que me transportou da primeira vida para a
segunda, no bolso do anoraque azul.
O anoraque é minúsculo, podia bem servir ao nenuco
da minha irmã Teresa. A mãe mostrou-mo, e mostrou-
me a gaveta onde o guardou. Disse
Quando quiseres sentir o que foste na primeira vida,
podes abrir a gaveta e pegar no anoraque, ainda
conserva o teu cheiro antes de teres nascido pela
segunda vez.
Queria saber se era um cheiro mau, mas tinha medo. E
se fosse parecido com leite azedo ou com bombinhas
de mau cheiro como as do carnaval? A mãe reparou no
meu medo, disse
Não te preocupes, é um cheiro a sombra, mais nada. O
cheiro do teu nome antigo.
Eu tinha um nome diferente, quando vestia o anoraque
e a ambulância amarela era a casa onde morava.
Qual foi o meu primeiro nome?
A mãe soletrou, e eu fiquei a matutar nas sílabas, na voz
que ainda estaria na minha cabeça a entoar o nome, na
voz que dentro da cabeça o reconhecia. Vozes
escondidas numa nuvem negra, a dormir
profundamente, sem despertador que as acordasse.
Vozes que conservavam uma atenção que em tempos
foi a minha, o cheiro que dantes era o meu – o cheiro
do escuro e das quatro paredes húmidas que me
cercavam. A mim e aos bichos rastejantes que
conviviam comigo, nascidos da noite, e vinham tzz-tzz-
tzz picar-me o corpo, crateras vermelhas por todo o
lado, na fotografia guardada com o anoraque azul.
Nunca abri a gaveta. O anoraque vai dormir lá dentro
tanto tempo quanto o meu primeiro nome dormirá
dentro da minha cabeça. O cheiro do anoraque dorme
dentro da gaveta e dorme dentro de mim. Shhhhhh,
não façam barulho, não quero que ele acorde, que as
borbulhas voltem a nascer da noite, ploc-ploc-ploc.
Data, hora, local. Esses não mudam. O papel onde
ficam registados não quer saber do momento em que
respirei pela primeira vez ao colo da mãe.
Mamã, como é que fui do teu coração para a tua
barriga?
Não foste, filho. A barriga não era minha. Mas, tu sabes,
o coração é mais forte, ganha sempre.
É para isso que serve a ambulância amarela, em cima da
mesa de cabeceira. Para me transportar nos momentos
difíceis, quando a cabeça se baralha e quase quase faz
acordar o cheiro e as vozes daquela vida que dizem ter
sido minha e me põem zangado com o mundo.
Zangado comigo, às vezes, por pensar coisas antigas.
Zangado com a mãe, porque não soube trazer-me na
barriga dela, evitando-me a estranheza de nascer duas
vezes. Pego na ambulância, com uma cruz encarnada no
lado esquerdo, e enfio-me lá dentro. Começo a respirar
melhor, o medo acalma. Penso que, embora o papel seja
esquisito, pois muda umas coisas e outras não, e embora
seja esquisita a viagem que me trouxe de uma vida para
a outra, eu sou um só. Um nome antigo, um nome
novo. Uma mãe e um pai, onde havia vozes nunca
ouvidas, excepto a dos bichos zing-zing-zing que
entravam pelos buracos. As mudanças vieram ter
comigo e tornaram a minha vida noutra vida. Sou eu,
nas duas vezes em que nasci.
Na fotografia guardada junto ao anoraque azul estou
sentado no tapete da sala. Tenho a ambulância amarela
na mão, mas não olho para ela. Olho para um lugar que
não fica em cima nem em baixo, nem de frente nem de