Fluir nº 1 - setembro 2018 | Page 37

Fluir nº1 - Renascimentos - 2018 minha terra. Quando percebi que tinha de me separar dos meus pais e esse abandono era irreversível, isso magoou-me muito, muito fundamente, e era complicado para mim porque acreditava naqueles ideais de construir uma sociedade nova lá, um país novo, uma coisa diferente; por outro lado, a minha segurança, do ponto de vista físico não estava assegurada, as coisas eram muito perigosas, havia muita violência, havia o perigo de eu ir parar às forças armadas, o que os meus pais queriam evitar, portanto eu queria vir, não queria, mas tinha de vir. Há uma grande ambivalência dentro de mim naquela altura mas o retorno era impossível de evitar. Como é que eu encontro Portugal quando chego? Bem, é um lugar seguro, onde posso ir à rua em segurança, ninguém faz mal, Portugal está ainda, economicamente, desequilibrado, mas viver em paz é sempre importante. Depois, o que vejo na metrópole? Não estava nada à espera de ver aquilo que encontrei; não estava à espera de ver uma terra tão pobre, de as pessoas serem tão atrasadas e sobretudo muito fechadas, com muito pudor, e acho que tudo isso ainda hoje se mantém. As pessoas são conservadoras, fechadas, têm muito pudor, olham muito para os outros, dão muita atenção ao que os outros pensam de si e do mundo, e havia uma pequenez que não esperava encontrar porque esperava uma terra muito, muito desenvolvida, muito civilizada, muito avançada, onde havia tudo aquilo que nas províncias ultramarinas não havia. Quando nós, lá, queríamos uma coisa qualquer, da última moda, onde é que isso existia? Na metrópole, lá, não, portanto obviamente foi uma grande decepção, mas por outro lado era um lugar em paz e isso é inegável. 4 – Moçambique, como tema, é uma presença importante nos seus livros. Para além da temática, de que outra forma sente que Moçambique e a África se tornaram importantes na sua sensibilidade, no seu olhar e portanto na sua escrita? Eu nasci em Moçambique, vivi lá os primeiros 13 anos da minha vida, e os 13 primeiros anos da nossa vida são muito importantes; determinam, provavelmente, tudo aquilo que vamos ser no futuro, portanto o que sou hoje depende daquilo que fui no passado em Moçambique, depende do local do meu nascimento, das características culturais desse local, do contexto colonial no qual eu também nasci e cresci, de tudo daquilo que rodeava esse contexto colonial e que era tropical, e portanto aquilo que sou hoje é o resultado do que fui antes, enquanto menina branca moçambicana, menina branca africana. Não é possível esquecer o meu passado, não estou a esquecer a minha infância que me marca de forma determinante, portanto é natural que, nos meus livros, Moçambique esteja tão presente, ou a forma como o colonialismo se exercia, e depois a forma como se deu a descolonização, como se deu a independência, como se deu o regresso a Portugal: tudo isso foram anos muito traumatizantes cheios de vida, de uma grande riqueza, de experiências e, na verdade, esta riqueza de experiências é que torna um percurso de vida interessante; mas o que quero dizer é que se eu sou escritora, isso precisa de se reflectir na minha escrita; sinto necessidade de reflectir essa experiência de vida, bastante fracturante, naquilo que escrevo, mas não sou uma escritora africana. Considero-me uma escritora portuguesa muito influenciada por um passado colonial. 37