Fluir nº 1 - setembro 2018 | Page 36

Fluir nº1 - Renascimentos - 2018 ENTREVISTA com Isabela Figueiredo 1 - Como foi e o que significou para a Isabel ter crescido em Moçambique? Como era a sua vida, os seus grupos, o que lhe interessava, o que lia? Para responder a esta questão é preciso contextualizar a minha infância. Sou uma filha única e tardia, que foi bastante protegida pelos pais no sentido em que não tinha muita liberdade para andar sozinha na rua nem ter grupos, isso por um lado. Por outro lado, era também, naquela altura em que vivia em Moçambique, demasiado nova para ter grupos. Não esqueçamos que eu vim para Portugal a um mês de fazer 13 anos, portanto não se pode falar de um grupo exactamente: tinha amigas (apenas amigas, não amigos, não me era autorizado conviver com rapazes), normalmente mais velhas do que eu, filhas de outros bancos portugueses que lá viviam. Como era a minha vida? Era a vida normal de uma menina que é protegida, muito bem educada pelos seus pais para superar a classe social à qual eles pertenciam; o objectivo da minha formação, da minha educação, é esse: superar um estigma social que é o dos meus pais, que eram boas pessoas, mas que vinham de uma de uma vida bastante pobre, sobretudo o meu pai em Portugal. O que é que eu lia? Lia tudo, os meus pais não eram pessoas propriamente cultas, embora fossem bem formadas humanamente e religiosamente; não tinham uma cultura que permitisse apoiar as minhas leituras, portanto eu lia tudo, escolhia normalmente os livros pelos títulos, muitos, ou pelas indicações que me davam na Biblioteca Itinerante da Gulbenkian, ou que as minhas amigas tinham lido e de que tinham gostado, e era assim que encaminhava as minhas leituras, não de outra forma. 36 2 - Nessa altura, como imaginava a «Metrópole» e a Europa? Dulce Cardoso, por exemplo, inicia O Retorno com a imagem da Metrópole como um lugar onde as raparigas usavam brincos de cerejas nas orelhas. A Isabel tinha, também, uma Metrópole e uma Europa mitificadas, ideais, ansiadas? Não é fácil essa sua pergunta sobre como é que nós idealizávamos a metrópole. Penso que a questão dos brincos de cerejas venha de um livro que havia na altura, da Verbo Ilustrado, que as meninas liam, chamava-se Os Brincos de Cereja e mostrava ilustrações de uma rapariga com umas cerejas penduradas nas orelhas. Mas havia de facto uma idealização de uma terra, a metrópole, uma terra europeia bem organizada, civilizada, por outro lado também muito ruralizada, ligada àquilo que é o nascimento dos frutos (frutos que nós não conhecíamos, estes frutos europeus, claro, que entre nós não existiam), de árvores, das estações do ano muito diversificadas, que também não tínhamos, porque estava sempre calor, e achávamos que Portugal era o máximo, que Portugal era como a Suíça, eu digo sempre: que era como a Suíça, muito rural, muito bonito, muito verde e muito desenvolvido, muito civilizado 3 – Que Portugal encontrou, quando veio definitivamente? Como foi a sua experiência da vinda? Qual foi a minha experiência de vinda? Foi complicada por sentimentos misturados. Por um lado eu queria vir, porque estava numa idade em que queria ser independente, separar-me dos meus pais, como todos os adolescentes. Por outro lado não queria vir porque me sentia moçambicana e era sempre a