Fluir nº 1 - setembro 2018 | Page 38

Fluir nº1 - Renascimentos - 2018 5 - Convive com a arte, a literatura, ou poesia africanas e moçambicanas? Há artistas moçambicanos (falo de artistas para que não tenha de restringir a sua resposta à literatura) de que gosta particularmente? Devo dizer que não convivo particularmente com artistas moçambicanos ou africanos. Gosto do João Paulo Borges Coelho, da sua literatura, e da Paulina Chiziane, sobretudo pelo facto de ser uma mulher negra e feminista, o que é um risco. É um risco ser feminista numa terra onde eu noto tanto patriarcado. Em Moçambique, noto que a sociedade é muito patriarcal e, portanto, é um risco para ela; é de uma grande coragem e gosto da coragem dela. Não tenho grandes referências. Saí de Moçambique há muito tempo e o problema é que me apercebi recentemente que não tem um investimento na cultura que justifique o aparecimento de grandes fenómenos culturais. Para haver um investimento na cultura será necessário existir um sério investimento na educação, e portanto isto é uma pescadinha de rabo na boca. Em Moçambique, se a educação não é suficientemente boa, a cultura também não será, e também não aparecerão grandes talentos ou serão raros. Apercebi-me disso na minha última e única estada em Moçambique, no final do ano passado, portanto não tenho muito a dizer sobre este assunto, infelizmente. 6 - Que autores, em geral, foram fundamentais no seu percurso? Muitos portugueses? Muitos de outras nacionalidades? 38 Muitos portugueses, muitos de outras nacionalidades. Portugueses: li os autores do neo-realismo. Nos anos 70 lia-se muito Alves Redol, Manuel da Fonseca, José Rodrigues Miguéis, Carlos de Oliveira. De outras nacionalidades, li muito autores e autoras britânicos; estou a falar das irmãs Brontë, estou a falar de Virgínia Woolf, Charles Dickens. Li os russos muito cedo: Tolstoi, Dotoyevski, sobretudo clássicos. Portanto os que me influenciaram, diria que foram estes que acabei de referir. 7 - «Memórias Coloniais» é um livro muito crítico em relação a um certo discurso de ex-colonos, saudosos de um «mundo encantador», que a Isabela denuncia. Mas sente alguma nostalgia - não propriamente um desejo do regresso ao passado, mas a saudade de uma vida que lhe marcou a juventude? Ou diria que cortou os laços (até onde possível), resolveu o assunto, e renasceu como portuguesa em Portugal? Pois é isto mesmo, de facto renasci como portuguesa em Portugal, e tenho o assunto, diríamos que a 75% resolvido, e se não cortei os laços é porque não é possível cortá-los, mas tenho a certeza absoluta que não desejo voltar ao passado, que esse passado dourado, esse mundo encantador escondia muita dor, muita injustiça, que eu vi quando era jovem, quando era criança, quando era adolescente, eu vi essa dor, e pude denunciá-la no Caderno de Memórias Coloniais, e não queria voltar a ela, e desejo que Moçambique, o mais depressa possível, consiga ultrapassar os traumas coloniais e tornar-se naquilo que merece ser, que é uma grande terra, um grande país, um país maravilhoso, um paraíso para os moçambicanos e para aqueles que o visitarem. Não desejo regressar ao passado. Estou em Portugal, sou uma moçambicana, filha de portugueses, tive um educação europeia, e hoje se reconhece como uma moçambicana ou como uma portuguesa nascida em moçambique.