Fluir nº 1 - setembro 2018 | Page 34

Fluir nº1 - Renascimentos - 2018 porque é muito inteligente. Ai como eu queria que a Camille o conhecesse. Vou casar-me, nunca mais nos encontraremos e ela sem o conhecer, só lhe mostrei o retrato e ela disse aquele “olalá” que exclama quando gosta muito, e isso raramente acontece. Fiquei vaidosa e feliz. Daqui a menos de um mês, ela partirá para a América, cada vez mais longe de casa e eu partirei para a terra onde nasci. Parece que viajaremos em sentido contrário, mas ambas caminharemos como quem nasce. Cada uma de nós terá muito vento para rasgar, agora com a certeza de que do outro lado é o futuro.) Sara e Camille (O cais é um lugar alegre e triste e eis Camille, alegre e triste.) (Nunca esperei que ela viesse despedir-se de mim.) (Eu tinha de vir despedir-me dela.) (Não parto sozinha, como em Paris.) (Não podia deixá-la partir sozinha.) (Tenho os olhos molhados.) (Caiu-me uma lágrima.) (Aponto para o meu peito e digo, enfim, o meu verdadeiro nome… Sarah.) (Eu sabia. Abraço-a.) (Ela sabia. Abraço-a.) (Entrego-lhe um lenço branco, um coração bordado por mim.) (Entrego-lhe uma caixa com um chapéu de feltro feito por mim.) (Adeus!) (Adeus!) 34 Sara (Esta é a minha terra, a minha casa, o meu chão. Lisboa há-de viver sempre comigo, dentro de mim o brilho azul do Tejo, o som vibrante do eléctrico, o cheiro doce das pastelarias, a luz moderna das montras. A minha prima, tão minha irmã. A minha amiga Sophia. Tudo e todos guardados no cofre do meu coração. Eu já não sou daqui, mas o amor que me fez regressar há-de erguer comigo a casa de hoje e do futuro. Há um frio de Fevereiro a entrar pelas frinchas, e é um frio lavado que me exalta. Abro a janela para o brilho verde dos campos e sei que sou feliz. Visto o casaco comprido, ponho o chapéu que Sarah me ofereceu, olho-me ao espelho e vejo o mesmo rosto que em Lisboa caminhava para a Embaixada. Começo a andar a caminho da padaria e saúdo as mulheres que nascem das portas entreabertas, figuras escuras, paradas de espanto, olhares que já não reconheço. São ainda jovens e respondem à minha saudação, envergonhadas. Assalta-me, num instante que me deixa gelada, a ideia de que elas são eu, se não tivesse partido nunca e, longe do António, sinto-me sozinha, tão sozinha. Continuo em passo mais apressado, os saltos dos sapatos em equilíbrio instável sobre as pedras, e de uma porta estreita uma voz velha de mulher atira-me, irónica, “Vejam só! Uma mulher de chapéu!”) Camille (Corremos para a amurada e vimos, nítida, firme, protectora, a estátua da Liberdade. A água cortada pelo barco não tem o azul do rio de Lisboa, nem a cidade que avistamos ao longe é branca como a que deixámos para trás. Mas todos sorrimos