Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
porque é muito inteligente. Ai como eu queria que a
Camille o conhecesse. Vou casar-me, nunca mais nos
encontraremos e ela sem o conhecer, só lhe mostrei o
retrato e ela disse aquele “olalá” que exclama quando
gosta muito, e isso raramente acontece. Fiquei vaidosa e
feliz.
Daqui a menos de um mês, ela partirá para a América,
cada vez mais longe de casa e eu partirei para a terra
onde nasci. Parece que viajaremos em sentido contrário,
mas ambas caminharemos como quem nasce. Cada uma
de nós terá muito vento para rasgar, agora com a
certeza de que do outro lado é o futuro.)
Sara e Camille
(O cais é um lugar alegre e triste e eis Camille, alegre e
triste.)
(Nunca esperei que ela viesse despedir-se de mim.)
(Eu tinha de vir despedir-me dela.)
(Não parto sozinha, como em Paris.)
(Não podia deixá-la partir sozinha.)
(Tenho os olhos molhados.)
(Caiu-me uma lágrima.)
(Aponto para o meu peito e digo, enfim, o meu
verdadeiro nome… Sarah.)
(Eu sabia. Abraço-a.)
(Ela sabia. Abraço-a.)
(Entrego-lhe um lenço branco, um coração bordado
por mim.)
(Entrego-lhe uma caixa com um chapéu de feltro feito
por mim.)
(Adeus!)
(Adeus!)
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Sara
(Esta é a minha terra, a minha casa, o meu chão. Lisboa
há-de viver sempre comigo, dentro de mim o brilho
azul do Tejo, o som vibrante do eléctrico, o cheiro doce
das pastelarias, a luz moderna das montras. A minha
prima, tão minha irmã. A minha amiga Sophia. Tudo e
todos guardados no cofre do meu coração.
Eu já não sou daqui, mas o amor que me fez regressar
há-de erguer comigo a casa de hoje e do futuro. Há um
frio de Fevereiro a entrar pelas frinchas, e é um frio
lavado que me exalta. Abro a janela para o brilho verde
dos campos e sei que sou feliz.
Visto o casaco comprido, ponho o chapéu que Sarah
me ofereceu, olho-me ao espelho e vejo o mesmo rosto
que em Lisboa caminhava para a Embaixada.
Começo a andar a caminho da padaria e saúdo as
mulheres que nascem das portas entreabertas, figuras
escuras, paradas de espanto, olhares que já não
reconheço. São ainda jovens e respondem à minha
saudação, envergonhadas. Assalta-me, num instante que
me deixa gelada, a ideia de que elas são eu, se não
tivesse partido nunca e, longe do António, sinto-me
sozinha, tão sozinha.
Continuo em passo mais apressado, os saltos dos
sapatos em equilíbrio instável sobre as pedras, e de uma
porta estreita uma voz velha de mulher atira-me,
irónica, “Vejam só! Uma mulher de chapéu!”)
Camille
(Corremos para a amurada e vimos, nítida, firme,
protectora, a estátua da Liberdade.
A água cortada pelo barco não tem o azul do rio de
Lisboa, nem a cidade que avistamos ao longe é branca
como a que deixámos para trás. Mas todos sorrimos